Os legítimos direitos da mulher e da mãe devem ser assegurados na justa medida, sem suprimir a vida do seu filho, ainda por nascer
A legalização do aborto no Brasil volta mais uma vez às atenções da opinião pública e das autoridades; estas são cobradas a tomarem uma decisão favorável ou contrária à “interrupção voluntária da gravidez”. Só que, desta vez, não serão os deputados federais e senadores a assumirem essa responsabilidade, mas os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Serão promovidas audiências públicas, antes que os ministros tomem suas decisões.
Por qual motivo entra na decisão da legalização do aborto o STF, que deveria cuidar mesmo da reta aplicação da Constituição, na qual já está prevista a inviolabilidade da vida do ser humano? Acontece que certos grupos militantes em favor da legalização do aborto, apoiados por um partido político (PSOL), entraram com uma ação no STF, sustentando que são inconstitucionais os dispositivos do Código Penal Brasileiro que vetam o aborto voluntário, pois afrontariam a dignidade da mulher e sua cidadania; a qualificação do aborto como crime e a afirmação da inviolabilidade da vida seriam contrárias à liberdade e à igualdade e dariam base legal à tortura e ao tratamento desumano e degradante de mulheres; e seriam contrários ao planejamento familiar, à saúde da mulher e aos seus direitos sexuais e reprodutivos.
Ao ler essas alegações, até parece que a argumentação a favor da “interrupção voluntária da gravidez” é válida. Quem, em sã consciência, poderia ser favorável ao vilipêndio da dignidade da mulher e ao seu direito à cidadania? Quem seria a favor da repressão à liberdade das pessoas, da discriminação, da tortura, do tratamento desumano e degradante de mulheres? Quem teria algo contra a saúde da mulher e seus legítimos “direitos sexuais e reprodutivos”? Quem seria contrário a um autêntico planejamento familiar? No entanto, tudo não é mais que cortina de fumaça e não está em jogo na lei que proíbe o aborto; e deveria ficar em segundo plano, quando se trata de decidir se pode, “legalmente”, matar um ser humano indefeso e inocente. Os legítimos direitos da mulher e da mãe devem ser assegurados na justa medida, sem suprimir a vida do seu filho, ainda por nascer.
Acontece que a linguagem em favor da legalização do aborto é nebulosa, escorregadia e leva a equívocos insidiosos. Começa com o próprio uso do conceito de “interrupção voluntária da gravidez”, em lugar da palavra aborto, que todos entendem e que diz claramente o que está em jogo: a supressão da vida de um ser humano inocente e indefeso, antes mesmo de nascer. O aborto não é a mesma coisa que fazer a retirada de uma vesícula biliar, de um rim doente ou de uma parte do organismo. O aborto não é simples interrupção de um processo orgânico chamado gravidez. Em palavras claras e sem rodeios, o aborto voluntário significa matar e eliminar um ser humano. Embora este ainda esteja unido ao corpo da mãe e seja dependente dela, ele não é parte do corpo da mãe, mas é um outro ser humano, um outro corpo. E o que se entende, finalmente, por “direito de cidadania”?, ou “direitos sexuais e reprodutivos”?
O STF vai discutir e decidir sobre a “descriminalização” do aborto até a 12ª semana de gestação. Em palavras mais simples, equivale a dizer que os membros do STF vão decidir se o ato voluntário de provocar o aborto antes de completar 3 meses de gestação será, daqui por diante, “legal” e se ficará livre de implicações judiciais e criminais. O preocupante dessa questão é que se olha o aborto apenas sob a ótica do “legal” ou do “criminal” da parte do adulto e se esquece completamente o principal atingido por esse ato, que é o próprio feto ou bebê em gestação. A lei, que deveria assegurar a proteção do direito à vida do ser humano indefeso e inocente, poderá voltar-se contra ele e assegurar inteiramente a proteção do agressor contra a vida do bebê. Isso não será uma inversão perversa da justiça e do direito?
As alegações sobre as consequências funestas do aborto para a mulher são baseadas num suposto “direito ao aborto”. Há até quem defenda o aborto como um “direito humano”. É muito lamentável que haja mulheres sofrendo pelas sequelas de abortos malfeitos e que mulheres até percam a vida em decorrência disso. No entanto, ninguém é obrigado a fazer um aborto. Vamos combater os males que atingem a mulher, legalizando a matança de inocentes? Deve o feto pagar com a vida por ações inconsequentes de adultos?
A Comissão Episcopal Pastoral para a Vida e a Família, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), emitiu recentemente uma nota reafirmando a posição clara da Igreja Católica “em defesa da integralidade, inviolabilidade e dignidade da vida humana, desde a sua concepção até à morte natural”. E condena todas e quaisquer iniciativas que pretendam legalizar o aborto no Brasil. Alguém esperaria que a posição católica fosse diferente disso?
Apesar de não ser aceita por todos essa posição oficial da Igreja Católica em relação ao aborto, ninguém poderá, no futuro, acusar a mesma Igreja de não ter falado claramente e defendido o primeiro direito dos nascituros: o respeito à sua vida. E se aqui argumentamos em base às razões da comum racionalidade e da ética, não esquecemos que o mandamento de Deus ordena: “não matarás”. A Ele deveremos, em última instância, prestar conta de nossos atos.
Cardeal Odilo Pedro Sherer
Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Publicado em O SÃO PAULO, na edição de 01/08/2018