Por Gabriel Frade, professor de Liturgia e Sacramentos
Apresentamos o comentário à Liturgia da Palavra do 28º Domingo do Tempo Comum – Is 25, 6-10a; Sl 22 (23), 1-3a.3b-4.5.6; Fl 4, 12-14.19-20; Mt 22, 1-14 –, redigido pelo professor Gabriel Frade. Natural de Itaquaquecetuba (São Paulo), Gabriel Frade é leigo, casado e pai de três filhos. Graduado em Filosofia e Teologia pela Universidade Gregoriana (Roma), possui Mestrado em Liturgia pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora D’Assunção (São Paulo). Atualmente é professor de Liturgia e Sacramentos no Mosteiro de São Bento (São Paulo) e na UNISAL – Campus Pio XI. É tradutor e autor de livros e artigos na área litúrgica.
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28º Domingo do Tempo Comum – Ano A
Leituras: Is 25, 6-10a; Sl 22 (23), 1-3a.3b-4.5.6; Fl 4, 12-14.19-20; Mt 22, 1-14
“Ide às encruzilhadas e convidai para as núpcias todos os que encontrardes.” (Mt 22, 9)
“[No Tempo comum] comemora-se (…) o próprio mistério de Cristo em sua plenitude, principalmente aos domingos.” (Normas Universais sobre o Ano Litúrgico e o Calendário, n. 43)
A liturgia deste domingo nos oferece uma imagem extremamente bela. Num certo sentido essa imagem é um pouco aquilo que na verdade é a própria liturgia: uma grande festa de encontro.
A primeira leitura do profeta Isaías nos apresenta Deus como aquele que organiza um amplo banquete, preparando “para todos os povos, sobre esta montanha, um banquete de carnes gordas, um banquete de vinhos finos, de carnes suculentas…” (Is 25, 6).
O mais curioso, é que pela referência ao local do banquete – “esta montanha” nome usual para indicar a colina de Sião, local onde está edificada Jerusalém (Cf. 2 Rs 19, 31; Sl 48, 27; Zc 8, 3; Hb 12, 22; etc.) –, era de se esperar que os convidados fossem os membros do povo eleito; no entanto, numa das poucas passagens do Antigo Testamento sobre uma concepção mais universal de experiência com Deus, fala-se de “todos os povos”.
A “re-velação” – do ponto de vista etimológico “tirar e por o véu” – é feita a todos os povos, já que a “cortina que se estendia sobre todas as nações” (v. 7) será arrancada justamente “sobre esta montanha”. Neste ponto vale lembrar que no Novo Testamento há uma passagem muito significativa onde se fala simbolicamente do véu do santuário do Templo: ele é rasgado de alto a baixo no momento da morte de Jesus (ver Mt 27, 51 e paralelos).
O texto fala ainda de um estado d’ânimo sereno, do momento que o próprio Deus “enxuga as lágrimas de todos os rostos” já que ele “fez desaparecer a morte para sempre”.
A morte que, dentro da perspectiva bíblica, entrara no mundo devido ao pecado da humanidade será finalmente aniquilada por Deus: “Senhor, se levardes em conta nossas faltas, quem poderá subsistir? Mas em vós encontra-se o perdão, Deus de Israel” (Antífona de entrada).
De fato, essa imagem de uma realidade transformada será retomada com muita ênfase também no Novo Testamento onde, por exemplo, a liturgia eterna descrita no livro do Apocalipse indica a destruição definitiva da morte e a comunhão com Deus não mais sobre “esta montanha”, mas agora numa “Jerusalém nova” (Ap 21).
É preciso dizer que já no Antigo Testamento, também a ideia do banquete associado à comunhão profunda com Deus estava bem presente, especialmente dentro de um contexto litúrgico. No livro do Levítico (Lv 1-7), por exemplo, encontramos uma extensa descrição dos sacrifícios que eram ofertados diante de Deus. Dentre estes havia aquele que tinha uma parte da vítima oferecida ao Senhor e o restante era consumido de forma ritual pelo oferente e pelo sacerdote. Este era um dos modos pelos quais o fiel entrava em comunhão profunda com Deus.
Ao se comunicar com os homens, Deus de certo modo respeita nossa estrutura antropológica. O ato de comer para os seres humanos não é apenas o momento no qual se consome alimento para manter o corpo em vida, como ocorre geralmente com os animais, mas se reveste de conotações altamente simbólicas.
Normalmente, dividir a mesa com alguém implica num gesto de comunhão. Se há possibilidade de escolha, dificilmente iremos preferir comer com algum desconhecido, preferimos sempre que possível comer com aqueles que nos são caros, que nos dão prazer pela sua companhia; temos que observar porém, que a culta moderna do fast food, da comida rápida, que embora seja de praticidade inegável, nos dificulta uma compreensão mais profunda dessas afirmações já que esta cultura tem também contribuído em muito para a diminuição de certos valores humanos.
“Para mim preparais a mesa… com óleo me perfumais a cabeça e meu cálice transborda” (Salmo responsorial). Deus mesmo nos prepara uma mesa. A ação primeira parte de Deus: ele nos quer junto de si; ele tem prazer em nos ter em companhia e para isso não mede esforços em nos conceder sua graça: “Ó Deus, sempre nos preceda e acompanhe a vossa graça para que estejamos sempre atentos ao bem que devemos fazer” (Oração do dia).
A cena do Evangelho retoma a mensagem da primeira leitura. Na continuação da leitura do Evangelho de Mateus proposta pela liturgia da palavra destes domingos, temos a descrição agora de um banquete messiânico. Jesus diante da perseguição e das críticas dos chefes dos judeus, narra a parábola do banquete nupcial: “O Reino dos Céus é semelhante a um rei que celebrou as núpcias do seu filho (…) (…) eis que preparei meu banquete, meus touros e cevados já foram abatidos e tudo está pronto. Vinde às núpcias” (Mt 22, 2.4).
A parábola continua dizendo que apesar da grandiosidade da festa e da importância do “dono” da festa, os convidados não só desprezam o convite como chegam a maltratar e até mesmo a matar os servos do rei que tinham a incumbência de apenas convidar os convivas.
Os antigos orientais eram povos que tinham uma grande preocupação com suas relações humanas. Desprezar um convite de algo tão importante quanto a festa de casamento era algo inadmissível e imperdoável, quanto mais a festa do filho de um rei. Podemos apenas imaginar os sentimentos que Jesus provocara em seus ouvintes ao desfilar diante de seus olhos essas imagens.
Diante da negação dos convidados, o rei não se faz de rogado: manda seus servos irem pelos caminhos para convidar os que encontrassem: “maus e bons” (v. 10).
Uma interpretação mais comum desta parábola vê nessas imagens Deus, como o rei que organiza o banquete, os profetas seriam os servos desse rei e os primeiros convidados seriam os judeus que se negaram a participar da boda do filho do rei, neste caso uma alusão ao próprio Jesus. No desfecho, outros serão convidados: imagem de outros povos reunidos no novo Israel que é a Igreja.
Chama-nos a atenção o fato de que os últimos convidados sejam classificados como “maus e bons”. Essa magnanimidade de Deus se faz ouvir numa outra passagem de Mateus (Mt 5, 45) e nos faz compreender que Deus oferece sua graça a todos os homens e mulheres, e quer a conversão de todos para si. Mas Deus, como é bem sabido, não faz violência à nossa liberdade…
Continuando a parábola, aparece uma figura misteriosa: alguém foi ao banquete sem a veste nupcial. Para nós, seria nossa veste “de gala”, condizente com a grandeza de certos eventos sociais. Há alguma dificuldade nessa imagem do evangelho, pois poderíamos nos perguntar sobre o seguinte fato: se as pessoas se encontravam pelos caminhos, como nos faz saber a parábola, como era possível que estas pessoas chegassem aí com vestes de festa, e somente uma não estivesse trajada adequadamente?
É preciso ver aí um símbolo e, como tal, buscar algum significado mais profundo.
De fato, São Cirilo de Jerusalém em suas catequeses mistagógicas interpreta essa passagem em sentido batismal: a falta da veste, isto é, da veste branca entregue no dia do batismo e conservada pelo cristão durante toda a oitava pascal durante as celebrações – e que era deposta somente no domingo sucessivo (domingo in albis) – era símbolo de todo processo de iniciação cristã, de mudança concreta de vida que culminava com o recebimento do batismo.
Paralelamente a este fato batismal, recuperado em seu sentido mais pleno pelo RICA (Ritual de Iniciação Cristã de Adultos), ainda hoje nas profissões monásticas o rito da vestição guarda um significado especial: vestir um hábito religioso é o símbolo de uma realidade mais profunda, é mudança concreta de vida, de atitudes e que são assumidas livremente pelo candidato. Lembrando que essas mudanças deveriam ser anteriores à vestição, afinal, como diz o adágio de nossa sabedoria popular: “o hábito não faz o monge”.
A verdade, é que em se tratando da celebração da eucaristia, todos somos de fato convidados para participar de um banquete: “Felizes os convidados para o Banquete nupcial do Cordeiro”. A pergunta é: quantos de nós trazemos a veste nupcial, isto é, quantos de nós procuramos corresponder ao amor de Deus em nossa própria vida, quantos de nós nos preocuparmos de fato com o nosso próximo?
“Os ricos empobrecem, passam fome, mas aos que buscam o Senhor, não falta nada” (Antífona da comunhão).
São Paulo na segunda leitura nos dá mostras desse equilíbrio entre a graça de Deus e a resposta do homem: “tenho aprendido a ter fartura e a passar fome, a viver desafogadamente e a padecer necessidade. Tudo posso n’Aquele que me conforta”.
Ele, que escreve aos filipenses provavelmente de alguma prisão, encontra motivações para agradecer à generosidade da comunidade: “No entanto, fizestes bem em tomar parte na minha aflição. O meu Deus proverá com abundância a todas as vossas necessidades”.
Ou seja, uma comunidade que realmente participa das celebrações é uma comunidade que está também atenta às necessidades dos irmãos. É uma comunidade que ao experimentar a gratuidade de Deus e na sua imitação, se preocupa em fazer com que todos participem do grande banquete da eternidade, não medindo esforços para isso.
ZENIT, 06 de outubro de 2011