Fundou a Ordem dos Monges
Beneditinos de Vallombrosa
João Gualberto, segundo filho dos Visdonini, nasceu no ano de 995 em Florença. Foi educado num dos castelos dos pais, Gualberto e dona Villa, nobres e cristãos. A mãe cuidou do ensino no seguimento de Cristo. O pai os fez perfeitos cavaleiros, hábeis nas palavras e nas armas, para administrar e defender o patrimônio e a honra da família.
Mas a harmonia acabou quando o primogênito da família foi assassinado. Buscando vingar o irmão, João Gualberto saía armado e com seus homens à procura do inimigo. Na Sexta-Feira Santa de 1028, ele o encontrou vagando solitário, numa das estradas desertas da cidade. João Gualberto empunhou imediatamente sua espada, mas o adversário, desarmado, abriu os braços e caiu de joelhos implorando perdão e clemência em nome de Jesus.
Contam os biógrafos que, ouvido seu pedido em nome do Senhor, João Gualberto jogou a espada, desceu do cavalo e abraçou fraternalmente o inimigo. No mesmo instante, foi à igreja de São Miniato, onde, aos pés do altar, ajoelhou-se diante do crucifixo de Jesus. Diz a tradição que a cruz do Cristo se inclinou sobre ele, em sinal de aprovação pelo seu ato. E foi ali que João Gualberto ouviu o chamado: “Vem e segue-me”. Depois desse prodígio, ocorrido na presença de muitos fiéis, uma grande paz invadiu sua alma e ele abandonou tudo para ingressar no mosteiro beneditino da cidade.
Nos anos seguintes, João Gualberto tornou-se um humilde monge, exemplar na disciplina às Regras, no estudo, na oração, na penitência e na caridade. Só então aprendeu a ler e a escrever, pois para um nobre de sua época o mais importante era saber manusear bem a espada. Adquiriu o dom da profecia e dos milagres, sendo muito considerado por todos. Em 1035, com a morte do abade, ele foi eleito por unanimidade o sucessor, mas renunciou de imediato quando soube que o monge tesoureiro havia subornado o bispo de Florença para escolhê-lo como o novo abade.
Indignado, passou a denunciá-los e combate-los, auxiliado por alguns monges. Mas as ameaças eram tantas que decidiu sair do mosteiro.
João Gualberto foi para a floresta dos montes Apeninos, numa pequena casa rústica encontrada na montanha Vallombrosa, sobre o verde Vale do Arno, seguido por alguns monges. O local começou a receber inúmeros jovens em busca de orientação espiritual, graças à fama de sua santidade. Foi assim que surgiu um novo mosteiro e uma nova congregação religiosa, para a qual João Gualberto quis manter as Regras dos monges beneditinos.
No início, o papa aceitou com reserva a nova comunidade, mas depois a Ordem dos Monges Beneditinos de Vallombrosa obteve aprovação canônica. Dali os missionários, regidos pelas Regras da Ordem Beneditina reformada, se espalharam para evangelizar, primeiro em Florença, depois em várias outras cidades da Itália.
Seguindo com rigor a disciplina e austeridade às Regras da Ordem, João Gualberto implantou no Vale de Vallombrosa um centro tão avançado e respeitado de estudos que a própria Igreja enviava para lá seus padres e bispos para aprofundarem seus conhecimentos. Todos oravam e trabalhavam a terra, replantando os bosques do Vale e plantando o alimento do mosteiro, por isso são considerados precursores da agricultura auto-sustentável.
Considerado herói do perdão, João Gualberto fundou outros mosteiros, inclusive o de Passignano, na Umbria, onde morreu no dia 12 de julho de 1073. Nos séculos seguintes, esses monges se especializaram em botânica, tanto assim que foram convidados para fundar a cátedra de botânica na célebre Universidade de Pavia. Enquanto isto, as de Pádua, de Roma e de Londres buscavam naqueles mosteiros os seus mais capacitados mestres no assunto.
Canonizado em 1193, são João Gualberto foi declarado Padroeiro dos Florestais, pelo papa Pio XII, em 1951.
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São Luis Martin e Santa Zélia Guèrin, pais de Santa Terezinha
Por ocasião da canonização de Luís e Zélia Martin…
Postado em 19 de outubro de 2015 por Equipe de Redação
Queridos irmãos e irmãs:
No último domingo, 18 de outubro, na Praça de São Pedro, o Papa Francisco inscreveu solenemente os cônjuges Luís Martin e Zélia Guérin, pais de Santa Teresa do Menino Jesus e da Sagrada Face, no cânone dos santos, que a Igreja propõe como exemplos de vida cristã aos fiéis de todo o mundo, para que se tornem fonte de inspiração e companheiros de jornada dos quais possamos receber estímulo, luz e consolo.
É uma ocasião de grande alegria e de agradecimento ao Senhor para todos nós, que apenas concluímos a celebração do V Centenário do nascimento de Santa Teresa de Ávila, mãe de nossa família religiosa, na qual a Igreja reconhece um lugar especialmente cheio de testemunhos credíveis da beleza e do amor de Deus.
Esta canonização é um sinal mais que o Senhor concede para consolidar nossa fé e entusiasmar o nosso caminho de carmelitas, chamados a experimentar a «ternura combativa» do Esposo (cf. Evangelii gaudium 85), que com o seu amor deseja acender a esperança no coração de todos os homens. Vivemos um período histórico marcado por uma profunda transformação, que afeta todos os âmbitos da vida humana – costumes, cultura, religião, sociedade, economia – a um nível global, desencadeando tensões e medos. Nascem sentimentos de insegurança e de desconfiança recíproca, criam-se situações de injustiça e instabilidade, que colocam a dura prova a convivência pacífica e a confiança entre as pessoas, fundamental para um caminho comum e fecundo.
A visão bíblica do ser humano, na duplicidade de seu ser como homem e mulher, e a compreensão de seu significado imediato à vida já não são um patrimônio comum mas, pelo contrário, são colocados em dúvida. No centro desta batalha pela vida está a família natural, fundada sobre o simples reconhecimento da diferença providencial entre homem e mulher que permite, dentro de uma relação de aliança baseada no amor recíproco, gerar, cuidar, aumentar a vida humana, não apenas para si mesmo mas para todo o gênero humano.
A canonização dos cônjuges Martin é um sinal dos tempos que nos deve interpelar profundamente porque tem um valor epocal. A Igreja, de fato, guiada pelo Espírito, decidiu – pela primeira vez na sua história – canonizar juntos um casal de esposos, durante a realização da XIV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que tem por tema a vocação e a missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo, no domingo dedicado ao Dia Mundial das Missões.
Uma família exemplar?
Passou-se um século e meio desde que Luís e Zélia, na meia-noite de 12 de julho de 1858, casaram-se em Alençon, mudando-se radicalmente muitas coisas, tanto na Igreja como na cultura europeia. Em que sentido seu matrimônio e a história de sua família podem ser exemplares para nossos dias quando o próprio modelo de família e a práxis prevalecente estão tão longe do que eles acreditavam e viviam?
Antes de tudo, é preciso se livrar dos preconceitos e clichês culturais que tacham imediatamente como antiquado e ultrapassado tudo o que pertence ao universo do século XIX. Se observarmos de perto a vida da família Martin, vemos um homem e uma mulher que viveram uma história comum, marcada por acontecimentos com os quais ainda hoje podemos nos identificar, porque são simplesmente humanos: não são muito jovens conforme o padrão da época (quando se conheceram – e poucos meses depois se casaram – ela tinha 27 anos e ele 35), unindo-se em matrimônio e colocando em comum suas vidas, aprendendo dia a dia a dividir as capacidades, as responsabilidades, os encargos, as alegrias e as penas. Luís tinha uma relojoaria, Zélia tinha aberto por sua conta uma empresa de produção do famoso bordado de Alençon. Seus respectivos trabalhos garantiam um certo nível de vida, que contudo viviam sem ostentação ou apego, apesar de que num determinado momento as condições socioeconômicas refeceram em consequência da guerra entre França e Prússia (1870-1871). Trabalhar os dois, conceber nove filhos, cuidá-los, enfrentar o luto pela morte de quatro deles em tenra idade, não foi certamente fácil, sobretudo para Zélia, mulher empreendedora, que tinha a responsabilidade de dar trabalho, e portanto sustento, a suas empregadas e suas famílias. Luís esteve sempre ao seu lado tocando a faina com sua mulher, com serenidade e delicadeza, apoiando-a com sua presença e optando, num determinado momento, em deixar seu trabalho para atender as necessidades de sua mulher, que via cada vez mais esgotada, e ajudá-la a levar adiante sua empresa, sobretudo quando eclodiu a doença que a vitimou ainda jovem, levando-a à morte em 1877, quando contava apenas 46 anos.
Luis encontrou-se deste modo vivendo sua condição de viúvo até a morte, que teve lugar 17 anos depois, depois de uma humilhante doença que atingiu as suas faculdades mentais. Ocupou-se das cinco filhas e de sua educação, entregando-se inteiramente e decidindo se mudar de Alençon a Lisieux, dando com isso às suas filhas a possibilidade de serem assistidas por sua tia Celina, com quem havia uma relação de estima e carinho. As cinco entraram no mosteiro. Assisti-las neste processo – sobretudo a pequena Teresa, a predileta – não foi para ele um pequeno sacrifício, ainda que vivesse como uma generosa oferenda de sua vida e de seus filhos a Deus, assim como sempre fez junto de Zélia. Por outro lado, havia escolhido para sua família o slogande Joana d’Arc: Servir a Deus em primeiro lugar.
O matrimônio: vocação e amizade
O breve elenco de algumas características concretas da experiência familiar de Luis e Zélia nos permite captar facilmente as analogias com a experiência de tantas famílias que hoje devem enfrentar dificuldades econômicas, conciliar o ritmo frenético do trabalho com a educação dos filhos, dar um sentido aos sofrimentos que inevitavelmente batem à porta, pondo em perigo a harmonia familiar. Mas o motivo pelo qual a Igreja considera exemplar seu testemunho de vida conjugal é muito mais profundo e tem a ver com a verdade do amor humano dentro do projeto divino da criação.
Se vamos à raiz de sua experiência, em seguida encontramos dois elementos que se fazem atuais para ilustrar como pode «funcionar» uma relação de amor e poder dizer assim uma palavra aos casais, sobretudo jovens, que estão desanimados diante do exemplo de tantos fracassos e, ainda conservando no coração o desejo, não acreditam que seja possível a fidelidade, resignando-se desta maneira a uma forma medíocre de vida.
O primeiro elemento é viver o encontro com o outro e o matrimônio como vocação. Para isto Luís e Zélia foram preparados por sua própria história pessoal, dado que os dois pensaram viver sua vida cristã consagrando-se a Deus. Não é este elemento, obviamente, o exemplar, mas a sensibilidade e atitude em perceber e conceber a própria existência como um diálogo com o próprio Criador, que tem um projeto e deixa sinais pelo caminho que indicam, para um olhar atento, qual é o caminho para saciar a sede do próprio coração. Somente percebendo-se como um dom que vem de Deus e aprendendo a olhar o outro como rosto do amor do Pai, é quando é possível construir a própria casa com um fundamento estável. Isto ficou claro para Zélia quando, ao ver se aproximar seu futuro marido enquanto percorriam em sentido oposto a ponte de São Leonardo em Alençon, sentiu ressoar em si uma voz que lhe dizia: «Aquele é o homem que preparei para ti».
O segundo elemento é consequência direta deste olhar e abertura de coração: viver a relação com sua própria mulher /com seu próprio marido em chave de amizade. A estima e o respeito que brotam da espontaneidade de se reconhecer gratuitamente como aliados e do gosto de ser uma ajuda dum para o outro, trazem a paciência, a humildade, a tenacidade, a ternura, a confiança e a curiosidade necessárias para que a relação não degenere na busca de si mesmo no outro, no intento de exercer poder, no desgaste do repetitivo. Em manifestações como estas: «Te sigo em espírito durante todo o dia; digo para mim mesma: “Neste momento faz tal coisa”. Não vejo o momento de estar ao teu lado, meu querido Luís; te amo com todo o meu coração e sinto que dobra meu carinho ao me ver privada da tua presença; seria impossível para mim viver longe de ti» (Cartas familiares 108); «Sempre estou feliz com ele, faz-me a vida muito serena. Meu marido é um homem santo, todas as mulheres deveriam ter um igual: este é meu desejo para elas neste novo ano» (Cartas familiares 1); ou melhor, «teu marido é um verdadeiro amigo, que te ama mais que a sua vida», não é nada açucarado, é a expressão da solidez de um carinho sincero.
As diferentes sensibilidades, os muitos detalhes da vida conjugal, que às vezes produzem paulatinamente uma distância e esfriam a intimidade, foram vividos por Luís e Zélia como ocasiões para lançar um olhar carregado de simpatia e de terna aceitação da própria diversidade, como aparece neste texto: «Quando receberdes esta carta, estarei ocupada colocando ordem na tua mesa de trabalho; não te alteres, não perderei nada, nem um velho esquadro, nem um pedaço de mola, nada mesmo, e assim estará tudo limpo em cima e embaixo! Não poderás dizer que “mudei o pó de lugar”, porque não ficará nada (…). Te abraço de todo coração; estou hoje, ao pensar que logo te verei, tão feliz que não posso trabalhar. Tua mulher, que te ama mais que sua própria vida» (Cartas familiares 46).
A transmissão da vida: criar e educar
No começo não foi fácil para Zélia e Luís viver o matrimônio e se abrir para a vida. Tinham que entender que amar a Deus de todo o coração passava através da entrega com toda a energia própria do casal, de modo que o Pai pudesse cuidar da sua criação e continuar edificando sua Igreja como família dos filhos de Deus. Foi a sinceridade de sua mútua busca da vontade de Deus e a docilidade aos conselhos de um sacerdote que os acompanhava o que lhes ajudou a entender a beleza da vocação matrimonial, pois pensavam em viver na continência. Nove foram os filhos que nasceram de sua união enchendo de alegria suas vidas: «Quando tivemos nossos filhos, nossas ideias mudaram um pouco: não vivíamos senão para eles, esta era nossa felicidade e não a encontramos nunca senão neles. Ou seja, tudo seguia-se fácil, o mundo não era já um peso. Para mim era uma grande compensação, por isso desejava ter muitos, para que cresçam para o céu. Entre eles, quatro já estão bem colocados e os outros, sim, os outros também irão para aquele reino celeste, carregados com mais méritos, porque lutarão durante mais tempo» (Cartas familiares 192).
Neste texto aparecem alguns aspectos centrais do modo de viver a relação com os filhos, que hoje as famílias precisam redescobrir: o nascimento de um filho como um presente, sempre – ainda quando sua vida seja breve e trabalhosa – porque vem de Deus e leva para Deus. Educar significa iniciar no conhecimento da própria origem do bem, o Pai, ensinar a desejar o céu e a viver a existência – os trabalhos, o compromisso, os sofrimentos – como uma preparação, algo precioso se acolhido com confiança e amor como passo de um caminho que leva à meta e aumenta o valor da pessoa.
Tudo isto é convincente e se torna uma verdade que plasma a consciência e dá forças para o caminho, quando os filhos podem vê-lo e quase respirá-lo na carne dos próprios pais como algo que confere sentido ao tempo e às atividades. O aspirar de Zélia à santidade, para si mesma e para seus entes queridos, era constante, embora conhecendo seus próprios limites e o tempo perdido: «Quero ser santa: não será fácil, há muito que limar e o tronco está duro como uma pedra. Teria sido melhor começar antes, quando era menos difícil, mas, no final: “antes tarde que nunca”» (Cartas familiares 110). Escreve a seu irmão: «Vejo com gosto que sois muito quisto em Lisieux: estás te tornando uma pessoa de fama; fico muito feliz, mas antes de mais nada desejo que tu sejas santo» (Cartas familiares 116). Inclusive face à filha de caráter difícil, Leônia, que no colégio tinha sido definida como «uma menina terrível», embora com a dolorosa consciência de seus grandes limites – «a pobre criança está cheia de defeitos como com uma coberta. Não se sabe por onde tomá-la» (Cartas familiares 185) – não falta a confiança sustentada pela fé na bondade de Deus e no abandono ao seu projeto de salvação: «O bom Deus é tão misericordioso que sempre esperou e ainda espera» (Ibid.).
Conhecemos bem, pelo testemunho de santa Teresinha, a grande intimidade de Luís com Deus e de que modo isso se refletia no seu rosto: «Por vezes, seus olhos marejavam-se de lágrimas. Em vão procurava sopitá-las. Parecia estar já desligado da terra, tanto sua alma gostava de imergir nas verdades eternas » (Manuscrito A, 60); «não precisando senão olhar para ele para saber como rezam os Santos» (Manuscrito A, 63). Durante sua doença, nos momentos de plena consciência, embora se sentindo humilhado, Luís repetia: «Tudo para maior glória de Deus!»
Num clima deste tipo, o espiritual é sustância de vida e as coisas se iluminam na perspectiva da eternidade, de uma forma «natural». A família pode recuperar assim sua característica original, com frequência pouco reconhecida em nossos dias, a de ser «o primeiro lugar em que aprendemos a comunicar», entendendo «a comunicação como descoberta e construção de proximidade» (Mensagem do Santo Padre Francisco por ocasião da 49º Dia Mundial das Comunicações Sociais, 17 de maio de 2015).
Um casal sensível, acolhedor e generoso
A atenção ao outro e a gratidão por ser cada um como é, exercitada na relação conjugal e que se reverte no cuidado para o crescimento moral e espiritual dos filhos, tinha na família Martin um importante complemento: a caridade generosa, a acolhida dos pobres, a atenção a quem está passando por necessidade. O amor a Deus, quando existe, é inseparável do amor ao próximo e, de modo especial, a quem precisa de ajuda. São muitos os episódios nos quais aparece com clareza na vida de Zélia e Luís a beleza desta atenção ao próximo – começando pelas operárias que trabalham na sua fábrica de bordados, a quem tratava como filhas (cf. Cartas familiares 29) – porque são a carne de Cristo, pessoas especialmente queridas por Deus (cf. Evangelii gaudium 24,178). É uma atenção à pessoa por completo, ao seu corpo e à sua alma, que se transforma em justiça retributiva, no compartilhar a própria mesa, no cuidado e busca de uma cama para o mendigo, na preocupação em confortar com a proximidade sensível de Deus no momento da morte através da presença de um sacerdote, na generosa ajuda econômica a um irmão em dificuldade, no prazer de estar a serviço da alegria dos demais, em solidarizar-se com o sofrimento de quem sofreu a perda de um ente querido, na visita aos enfermos.
A atenção dos esposos Martin aos pobres faz parte de um estilo de pobreza que marca no espírito das filhas o sentido concreto da presença de Jesus e da verdade de seu Evangelho. Sua sobriedade não é mesquinhez mas a atitude que contrasta a tendência do coração a se fechar na avareza de seu próprio tempo, de suas próprias energias, de seus próprios recursos espirituais e materiais. A alegria na pobreza que os faz ricos em humanidade se alimenta da experiência de ter a própria riqueza de acolher a graça de Cristo, reconhecendo as próprias fraquezas e culpas, recebendo a misericórdia de Deus, para viver em união com Ele, solidários com os irmãos aos quais manifestam sempre sentimentos de misericórdia: «Deus meu, que triste é uma casa sem religião! Que espantosa aparece a morte! […] Espero que o bom Deus tenha piedade desta pobre mulher; fora educada tão mal que é totalmente perdoável» (Cartas Familiares 145); «Reza muito a são José pelo pai da criada que está gravemente doente, muito me doeria que esse pobrezinho morresse sem confissão» (Cartas Familiares 195); «Tive tantos quefazeres que adoeci eu também […] mas tinha que permanecer em pé parte das noites para cuidar da criada» (Cartas Familiares 123); «Insisti tanto que meu marido decidiu vender uma parte de seus títulos do Crédito Fiduciário, perdendo assim 1.300 francos dos 11 mil conseguidos. Se meu irmão tem necessidade de dinheiro que me peça imediatamente e me diga se precisa que vendamos o resto» (Cartas Familiares 68); «Pedi-lhe que viesse aqui todas as vezes que tivesse necessidade de qualquer coisa, mas nunca veio. Finalmente, no começo do inverno, teu pai encontrou-o num domingo que fazia muito frio: tinha os pés descalços e tiniam-lhe os dentes. Comovido de piedade por aquele desventurado, começou a fazer todo tipo de esforços para que entrasse numa residência. […] Teu pai não se deu por vencido: tomou no peito esta situação e usou de todas suas influências para fazê-lo entrar nos Inválidos» (Cartas Familiares 175).
A fonte da santidade de suas vidas
Na homilia da vigília de oração pelo Sínodo da Familia realizada na Praça de São Pedro no último 3 de outubro, o papa Francisco disse: «Para compreender hoje a família, entremos também nós no mistério da Família de Nazaré, na sua vida escondida, rotineira e comum, como é a vida da maioria das nossas famílias, com as suas penas e as suas alegrias simples; vida tecida de serena paciência nas contrariedades, de respeito pela condição de cada um, de humildade que liberta e floresce no serviço; vida de fraternidade, que brota de sentir-se parte de um único corpo. A família é lugar de santidade evangélica, realizada nas condições mais comuns. Nela se respira a memória das gerações e mergulham raízes que permitem chegar longe. É lugar do discernimento, onde nos educam a reconhecer o desígnio de Deus acerca da nossa própria vida e a abraçá-lo com confiança. É lugar de gratuidade, de presença discreta, fraterna e solidária, que ensina a sair de si mesmo para acolher o outro, para perdoar e ser perdoados».
Esta descrição nos proporciona a medida da contemporaneidade da família Martin. Sua canonização mostra a todas as famílias, em primeiro lugar às cristãs, a beleza extraordinária das coisas ordinárias, quando a própria história se recebe das mãos de Deus e a oferecemos a Ele, com a serena certeza de que «a coisa mais sábia e mais simples em tudo isto é se abandonar à vontade de Deus e se preparar de antemão para levar a própria cruz com a maior valentia possível» (Cartas familiares 51), dispondo-se a «aceitar generosamente a vontade de Deus, seja qual for, pois será sempre o melhor para nós» (Cartas familiares 204).
A paz interior, a confiante tenacidade na hora de assumir positivamente os desafios que a vida coloca diante de nós, a capacidade de viver as relações com generosidade colocando no centro o outro na sua unicidade, que caracterizaram a experiência matrimonial de Luís e Zélia e na sua relação com os filhos, não são fruto de graças especiais ou de experiências místicas. Brotam, melhor ainda, do tomar a sério a vontade de Deus colocando-se serenamente em discussão e de viver em profundidade a vida da Igreja, recebendo diariamente a graça do sacramento eucarístico e reforçando sua união com Jesus na adoração de seu amor fiel e oferecido constantemente na Hóstia Consagrada, orando pessoalmente e como família reunida entorno da Virgem Maria, participando na atividade caritativa da paróquia com gozosa disponibilidade embora no meio de muitos compromissos. E em tudo isto ter sempre tempo para escutar as filhas, dispostos a corrigi-las com firmeza e suavidade, narrar-lhes a vida de Jesus, cuidar da sua interioridade abrindo espaço para Deus com uma disposição de confiante abandono à sua presença misteriosa e concreta. Sentir-se olhados com admirado estupor e respeitados na sua própria individualidade irrepetível, reconhecidos como um bem incondicional, inclusive quando a própria condição fora origem de sofrimento, é um patrimônio de bem-estar e positividade sem preço e indestrutível para a pessoa que o recebe. É a experiência humana que mais se aproxima do olhar de Deus e que por isso abre a porta do coração e lhe permite percorrer os caminhos da santidade, como a história desta família mostra claramente.
A busca assídua da intimidade com o Senhor e com Maria, vivida exemplarmente por Luís e Zélia, é a mensagem mais valiosa deixada como herança para as suas próprias filhas e a nós, filhos de Santa Teresa. Na sua canonização podemos fazer o nosso convite dirigido ao Carmelo Teresiano para ser mais família, para descobrir a beleza e a importância de nossas responsabilidades cotidianas, aprendendo humildemente das famílias que vivem com compromisso a própria vocação e missão.
Anima-nos extraordinariamente constatar que verdadeiramente «de um “sim” pronunciado com fé, derivam consequências que se estendem muito para além de nós mesmos e se expandem no mundo». Olhando os esposos Martin e os frutos visíveis de santidade de seu ser um só coração e uma só alma, nos damos mais conta que, aprendendo a comunicar, chegamos a ser «comunidade que sabe acompanhar, festejar e frutificar», e compreendemos que «a família mais bela, protagonista e não problema, é aquela que, partindo do testemunho, sabe comunicar a beleza e a riqueza do relacionamento entre o homem e a mulher, entre pais e filhos» (Mensagem do Santo Padre Francisco para a 49ª Dia Mundial das Comunicações Sociais, 17 de maio de 2015).
Meu desejo é que, a partir da graça que recebemos através desta canonização, nos comprometamos a conhecer de perto, também através da leitura de sua correspondência, o testemunho deste casal e nos insiramos criativamente no caminho que a Igreja está traçando, convidando-nos a redescobrir a família como sujeito imprescindível para a evangelização e como escola de humanidade.
Pe. Saverio Cannistrà
Prepósito Geral
Fonte: http://misericordia.org.br/formacoes/por-ocasiao-da-canonizacao-de-luis-e-zelia-martin/