Quaresma, tempo de ascese

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Texto: Padre Raul Kestring

roponho-me a refletir, brevemente, com você, caro leitor, sobre uma descoberta pessoal que me fez entender e de uma forma nova o significado da Quaresma para a nossa vida, para a Igreja, para a sociedade.

Encontrei na Carta do Apóstolo Paulo um texto que fundamenta esta minha descoberta.

Leiamo-lo juntos:

“Não sabeis que entre todos os que correm no estádio, na verdade, somente um recebe o grande prêmio? Correi de tal maneira que o alcanceis! Todos os que competem nos jogos se submetem a um treinamento rigoroso e isso, para obter uma coroa que logo se desvanece; no entanto, nós nos dedicamos para ganhar uma coroa que dura eternamente” (1Cor 9,24-25).

Paulo compara o cristão a um atleta. E diz que para ganhar o prêmio, ele se submete a “um treinamento rigoroso”. Renuncia a outros afazeres para treinar, deixa de lado alimentos prazerosos, enfrenta o cansaço, exercícios físicos exigentes. Tudo isso para que seu corpo se adestre em vista de ganhar a corrida.

O cristão, o discípulo de Jesus, igualmente, está em constante e rigoroso treinamento. Isto, em vista de um prêmio diferente, incorruptível, eterno, que é a própria salvação, a santidade, o convívio definitivo com Deus, de onde viemos e para onde desejamos caminhar.

O Senhor não prometeu facilidades nessa empreitada: “Se alguém quiser ser meu discípulo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mt 16,24).

É por isso que, desde a Quarta- -feira de Cinzas, abertura do tempo quaresmal, com a cerimônia da bênção e imposição das cinzas, lembramos a necessidade da penitência e da conversão para uma vida agradável a Deus. Também porque sabemos que agradando a Deus, somos felizes e muito mais felizes seremos na perspectiva da vida futura.

Dessa forma, a palavra ascese, já utilizada largamente pelos Padres da Igreja explica, expressa, um pouco a minha descoberta.

A partir da sua origem, nos damos conta que ascese não significa somente esforço, exercício, jejum, abstinência. Também isso. Mas nos projeta muito além. Ascese provém de um verbo latino que significa subir (ascendere). Daí vem a palavra que designa o mistério da subida de Jesus ao céu, como encontramos nos Atos dos Apóstolos (At 1).

A vida do Senhor nesta terra foi uma subida constante, porque seu objetivo era ensinar a todos os seres humanos o caminho do céu. E culminou na sua Ascensão.

Ele foi o primeiro e modelar asceta, verdadeiro atleta, como refere Paulo. Em sua pobreza, castidade, obediência – desde pequeno era obediente aos seus pais. “E era-lhes submisso” (Lc 2,50. “As raposas têm tocas; os pássaros têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça” (Mt 8,20).

Portanto, ascese não tem sentido em si mesma. Encontra seu sentido verdadeiro enquanto eleva o asceta a maior perfeição, a mais aproximar-se do ideal de uma vida iluminada pela luz de Cristo em todos os sentidos da sua existência. Hoje melhor do ontem! Sem hiatos! Sem voltar atrás! Melhor cristão! Melhor cidadão! Melhor pai, mãe, filho, estudante, profissional…!

A tradição cristã/católica criou práticas como meios do fiel entrar em contato com os mistérios da salvação e libertação das fraquezas e limites humanos, lançando as pessoas na dinâmica da ressurreição. Como ocorre com a força da gravidade, que atrai os corpos para baixo, para o chão, assim se pode por analogia afirmar a existência de uma gravidade espiritual. Esta também atrai os humanos para baixo, para as tentações do poder, do prazer e do ter. Foram exatamente as tentações de Jesus no deserto, quando foi permitido ao Diabo tentar o Senhor. Vencido, o tentador afastou-se e o Filho do Homem prosseguiu sua missão até o fim.

Além do Jejum, abstinência, esmola, penitência, recomendados pelo próprio evangelho (Leia Mt 6), destacamos outras práticas não descuradas pelo povo de Deus.

A prática religiosa mais característica da Quaresma, com certeza é a Via-Sacra. Feita de quinze momentos, que denominamos estações, contempla os últimos momentos da vida terrena de Jesus. Desde a sua condenação e prisão, passando pelo caminho do Calvário, até a sua morte e ressurreição, acompanha-se em atitude de reflexão, meditação, orações e cânticos próprios quinze “estações”. Interessante é perceber como o povo de Deus adere a essa espécie de para- -liturgia quaresmal. Embora recomendada para todos os dias do ano litúrgico como educativo momento de fé, amor a Deus e ao próximo sofredor e necessitado. E são inúmeros os locais, jardins, morros, trajetos, onde figuram as imagens ou pinturas da Via-Sacra, onde o povo cristão reza e medita a paixão e a ressurreição do Senhor.

Outra prática não menos edificante é a leitura dos Evangelhos da Paixão/Ressurreição. É a luz da Palavra de Deus sob o foco do bíblico/ vetero-testamentário do Servo Sofredor. Mistério, este, já profetizado pelo Profeta Isaías, mas que não faz calar o humano porquê da dor e morte do inocente. Como numa só palavra, Deus criou o céu e a terra, com uma palavra poderia ter salvado a humanidade do seu pecado. No entanto, quis que seu Filho derramasse seu sangue como gesto extremo do seu amor misericordioso pela humanidade, especialmente pela humanidade sofredora.

Ainda a oração do terço de Nossa Senhora, feito de cinco dezenas de Ave-Marias, em seus vinte mistérios da vida do Senhor e sua Mãe, divididos em quatro grupos de cinco cada um. São os mistérios denominados, gozosos, gloriosos, dolorosos e luminosos. O terço pode ser uma privilegiada oração quaresmal, especialmente quando rezamos e meditamos com Maria os mistérios dolorosos.

Não podemos deixar de aqui recomendar, enfim, a Campanha da Fraternidade. Promovida e animada há mais de cinquenta anos pelos Bispos Católicos do Brasil, propõe sempre uma chaga social para a atenção e cuidado não só dos católicos, mas de todas as pessoas interessadas em qualidade de vida para a sociedade, para os oprimidos pela exclusão e pela dor. Neste ano, seu tema é “Fraternidade e Políticas Públicas”; e o lema: “Serás libertado pelo direito e pela justiça” (Is 1,27).

A imagem de Jesus subindo o monte Calvário carregando a cruz que lhe impuseram pode ser também a imagem de toda pessoa comprometida com Deus, consigo mesma e com a humanidade. Não se deseja o sofrimento! Nem para si, nem para os outros. Nem para os animais e para qualquer ser vivo. Apregoar o sado-masoquismo seria flagrante barbarismo, desumanidade! No entanto, negar que o sofrimento, a carência, o limite inexistem é como querer sonhar de dia! Não escapa nem aos próprios filósofos essa dura constatação.

O cristianismo oferece a resposta ao mistério da dor. Há quem afirme que Deus se encarnou por causa do nosso sofrimento. Basta lembrar o livro neotestamentário dos Atos, onde nada mais e nada menos do que o evangelista Lucas, colocando na boca de Deus, afirma: “Tenho visto com atenção a aflição do meu povo no Egito, ouvi os seus clamores e desci para livrá-lo” (At 7,34).

Deus se comove com nossas lágrimas. E já desceu (Cf Fl 2), está conosco e quer fazer-nos subir das nossas misérias e fraquezas para que tenhamos vida plena, alegre, feliz, esperançosa. Tanto em âmbito pessoal, comunitário, social ou cosmológico. Ele é o Onipotente. Mesmo que se tenha feito fraco e morrido na cruz. Foi por solidariedade, compaixão. Foi por extremo amor. Seu amor. Amor do Pai Eterno pelo Espírito Santo!

Terminamos com o Apóstolo Paulo: “Quando subiu ao alto, (Jesus) levou muitos cativos, cumulou de dons os homens (Sl 67,19). Ora, que quer dizer ele subiu, senão que antes havia descido a esta terra? Aquele que desceu é também o que subiu acima de todos os céus, para encher todas as coisas” (Ef 4,8-10).

O mesmo Paulo, a sua mesma Carta: “Portanto, eis o que digo e conjuro no Senhor: não persistais em viver como os pagãos, que andam à mercê de suas ideias frívolas.

Têm o entendimento obscurecido. Sua ignorância e o endurecimento de seu coração mantêm- -nos afastados da vida de Deus.

Indolentes, entregaram-se à dissolução, à prática apaixonada de toda espécie de impureza.

Vós, porém, não foi para isto que vos tornastes discípulos de Cristo, se é que o ouvistes e dele aprendestes, como convém à verdade em Jesus.

Renunciai à vida passada, despojai- vos do homem velho, corrompido pelas concupiscências enganadoras.

Renovai sem cessar o sentimento da vossa alma, e revesti-vos do homem novo, criado à imagem de Deus, em verdadeira justiça e santidade (Ef 4,17-24).

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