Nem o próprio Raul Seixas imaginava onde O dia em que a terra parou iria parar e que situação a tiraria do seu baú. Foi uma forma lúdica que alguém encontrou de ler aquelas sonoras previsões proféticas se realizando neste agora de nossas vidas. De minha parte, admirador da poesia, vou buscar em outra fonte, mais refinada – segundo meus critérios – não uma profecia, mas uma memória, tão irônica e provocante, senão mais, que a canção ressuscitada. Trata-se de uma Página de história, que transcrevo para os leitores:
De uma História Universal editada no Século XXXIII: “Os homens do Século Vinte, talvez por motivos que só a miséria explicaria,
costumavam aglomerar-se inconfortavelmente em enormes cortiços de cimento. Alguns atribuem o fato a não se sabe que misterioso pânico ao simples contato com a natureza; mas isso é matéria de ficcinonistas, místicos e poetas… O historiador sabe apenas que chegou a haver, em certas grandes áreas, conjuntos de cortiços erguidos lado a lado sem o suficiente espaço de arejamento, que poderiam alojar vários milhões de indivíduos. Era, por assim dizer, uma vida de insetos – mas sem a segurança que apresentam as habitações construídas por estes.”
O Caderno H, de Mario Quintana, de onde extraio essa informação poética, traz tantos outros diamantes literários ou, na expressão dele mesmo, quintanares – Que eu vou passando e passando,/ como em busca de outros ares…/ sempre de barco passando,/ cantando meus quintanares, em Canção de barco e de olvido – cuja leitura recomendo com insistência. Nada perderás, exceto se não leres.
Mas o que me move são outras reflexões que pedem sejam feitas. Diante da pandemia e cônscio de sua gravidade, eu enxergo além, percebo muitos outros exames que devem ser feitos, não apenas aqueles que confirmam ou descartam a presença do vírus. Pouco a pouco, vou me convencendo de que um exame histórico de nossas consciências, de nosso modus vivendi, de nossas reais preocupações e tanto mais estão ululando no ar, desejando nos infectar positivamente e, se não o formos, continuaremos doentes, pois o Coronavírus, julgo, é reflexo de pandemias antigas e de outras ordens, com diferentes motivações, valoradas por vetores comumente corrompidos, até então e a muito tempo despercebidas pela massa – ou não querendo serem vistas.
Em outro quintanar seu, o poeta diz que Com o tempo, não vamos ficando sozinhos apenas pelos que se foram: vamos ficando sozinhos uns dos outros, pensamento cujo título é Coisas do tempo, ao que acrescentaríamos o pronome possessivo nosso, Coisas do nosso tempo. Penso em todos aqueles que já vivem a solidão em seu dia-a-dia e que, agora, sós e isolados, devido ao
misterioso pânico ao simples contato com a natureza – lembrando a Página de história – encontram-se em seus aposentos, esperando… Com toda a força metafórica que a poesia contém, foi assim mesmo que aconteceu: Cinco minutos
depois que todas as nações do mundo decretaram mobilização geral, houve a imobilização geral – está no Caderno H, letra que dá início a esta pequena História do fim do mundo.
Estamos longe do fim do mundo, óbvio. É apenas o tom dramático que carrega consigo um verso bem escrito e que caiu bem no enredo. Mas também é verdade que esta Pausa está longe, Oh! [como está longe de] todo o sossego e lucidez das madrugadas, quando o último grilo já parou seu canto e ainda não se ouviu o canto do primeiro pássaro – sempre Mario Quintana, poeta
e pro(feta)fundo conhecedor da vida.
Pe. Fernando Steffens
20/03/202