Por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração
SÃO PAULO, quinta-feira, 23 de junho de 2011 (ZENIT.org) – Apresentamos o comentário à liturgia do 13º domingo do Tempo Comum – 2Rs 4, 8-11.14-16; Rm 6, 3-4.8-11; Mt 10, 37-42 – redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes – São Paulo). Doutor em liturgia pelo Pontificio Ateneo Santo Anselmo (Roma), Dom Emanuele, monge beneditino camaldolense, assina os comentários à liturgia dominical, às quintas-feiras, na edição em língua portuguesa da Agência ZENIT.
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13º DOMINGO DO TEMPO COMUM
Quem não toma a sua cruz não é digno de mim.
Leituras: 2Rs 4, 8-11.14-16; Rm 6, 3-4.8-11; Mt 10, 37-42
“Aquele que não toma sua cruz e não me segue não é digno de mim. Aquele que acha a sua vida, a perderá, mas quem perde sua vida por causa de mim, a achará” (Mt 10, 38-39).
Palavras exigentes e promissoras ao mesmo tempo.
São palavras que saem da boca de quem viveu em si mesmo a experiência de amar até o ponto de doar a própria vida e recuperá-la pelo poder do Pai, ao qual ele se entregou sem reserva, desde o início da sua existência humana (cf. Hb 10, 5-10) até a cruz: “Pai, em tuas mãos entrego meu espírito” (Lc 23,46).
As palavras de Jesus sobre a exigência que o discípulo deve observar em abraçar a cruz talvez possam ressoar excessivamente desafiadoras, especialmente ao constatarmos, de um lado a evidente desproporção que existe entre a fragilidade humana e nosso desejo natural da vida, e a aparente proposta de abraçar o sofrimento e a morte, de outro lado.
Infelizmente, uma certa tradição ascética desviou o sentido profundo das palavras de Jesus e desnorteou o sentido do caminho espiritual cristão.
Ela baseava a vida espiritual mais sobre o esforço moral do indivíduo e sobre os méritos que ele deveria ganhar com seu empenho pessoal, do que sobre a conformação a Cristo, iniciada pela participação a seu mistério pascal no batismo, e desenvolvida graças à obediência interior à ação do Espírito Santo no batizado. O resultado dessa atitude foi uma concepção ‘moralística’ da vida espiritual e uma visão negativa da cruz.
O apóstolo Paulo nos orienta na verdadeira direção:“Portanto pelo batismo nós fomos sepultados com ele na morte para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também nós vivamos vida nova” (Rm 6, 4).
É a participação na morte e na ressurreição de Cristo no batismo, com a participação ao seu Espírito, que nos faz passar para a vida nova. Ela nos doa a capacidade de viver e atuar em comunhão com Cristo e como ele, aprendendo a amar o Pai e os irmãos até o dom total de nós mesmos.
O paradoxo evangélico, vivenciado antes e proposto depois por Jesus ao discípulo de todo tempo, é que esta é a verdadeira maneira para realizar o profundo desejo de vida que brota do nosso profundo: “Aquele que não toma sua cruz e não me segue não é digno de mim. Aquele que acha a sua vida, a perderá, mas quem perde sua vida por causa de mim, a achará” (Mt 10, 38-39).
A missão dos apóstolos é modelada sobre o exemplo e o estilo de humildade e de fraqueza humana do próprio Jesus: “O discípulo não está acima do mestre, nem o servo acima do seu senhor” (Mt 10, 24). O Verbo que se fez carne e que esvaziou a si mesmo para assumir nossa condição humana e até nosso pecado, é Aquele que é glorificado pelo Pai e faz partícipes da sua própria vida os que acreditam nele (Fl 2, 6-14).
Seguir Jesus significa inevitavelmente entrar em contraste com os critérios do mundo, da auto-referência e auto-afirmação e do poder, em todas as suas formas.
Jesus, ao despedir-se dos seus discípulos e ao contemplar os desafios que eles estão para enfrentar, reza ao Pai para que eles fiquem no mundo, mas que não sejam do mundo (cf. Jo 17, 15-16).
Pensar, julgar, e agir segundo a lógica da confiança em Deus, do amor a Jesus e aos irmãos, exige decisões e escolhas que entram em conflito com tudo o que temos de mais íntimo e querido, até de nossos próprios familiares, que constituem nossas raízes e o nosso futuro: “Aquele que ama pai ou mãe mais do que a mim não é digno de mim. E aquele que ama filho ou filha mais do que a mim não é digno de mim.” (Mt 10,37). “Eis que vos envio como ovelhas entre lobos” (Mt 10,16). “Não penseis que vim trazer paz à terra. Não vim trazer paz, mas espada.” (Mt 10, 34).
Ao longo de todo o cap. 10 do evangelho de Mateus, Jesus destaca a exigência do desapego radical de qualquer poder humano (dinheiro, propriedades, instrumentos de trabalho), para que o discípulo possa confiar unicamente na força que vem de Deus e gozar da liberdade que vem do seu Espírito.
É neste contexto que Jesus anuncia também a exigência de o discípulo abraçar, a exemplo do Mestre, a sua própria cruz, e com isso a promessa de perder a própria vida para Jesus e para o evangelho, ele discípulo, conseguirá realizá-la de verdade.
Abraçar a cruz junto com Jesus significa para o discípulo orientar totalmente sua própria vida para o Pai e confiar no poder que vem da sua graça. Por ela o discípulo, assim como Jesus, tem poder de anunciar e inaugurar o reino de Deus desde já, dentro das ambigüidades da história humana. A experiência do reino de Deus é a transformação dos corações pelo perdão e a graça divina, e uma maneira de viver e até de organizar a sociedade humana diferente, em harmonia com o projeto de Deus. Ele quer que todo homem e mulher tenha vida, e vida plena, em Cristo.
“Mas se morremos com Cristo, temos fé que também viveremos com ele… Assim, vós também considerai-vos mortos para o pecado e vivos para Deus, em Cristo Jesus” (Rm 6,8.11).
Esta perspectiva pascal que cada cristão e toda comunidade é chamada a assumir para se tornar discípulo autêntico de Jesus não significa afastar-se do empenho responsável para cuidar e promover com inteligência criativa e perseverança a própria vida e a da comunidade. Como homens e mulheres do nosso tempo, precisamos também imaginar os instrumentos mais apropriados para anunciar de maneira eficaz o evangelho e de dar seu testemunho encarnado em nossas vidas, nos novos contextos da sociedade que está se transformando tão profundamente.
O apelo de Jesus, porém, nos convida a realizar a unidade integral do nosso coração, da nossa vida, orientada totalmente para Deus, como ele mesmo viveu e segundo o grande e unitário mandamento: “Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo teu entendimento e com toda a tua força…. Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mc 12, 30-31).
Renunciar a si mesmo, não amar os próprios familiares mais do que Cristo, renunciar aos próprios bens como garantia da existência e doar até a própria vida por amor de Cristo e do evangelho, tudo isso é tão somente a condição prévia para procurar o Pai e Jesus, como a autêntica nascente da vida e o verdadeiro tesouro.
O objetivo que Jesus nos propõe através do desapego é passar da dispersão dos afetos, dos interesses, das energias vitais, que nos escravizam, para tornar-nos novamente pessoas unificadas e libertas em Cristo, para assim desejar e, ao mesmo tempo, buscar a ele mesmo e ao reino de Deus. “Quem não renunciar a tudo o que possui, não pode ser meu discípulo” (Lc 14, 33). Este é enfim o sentido das palavras de Jesus à tão querida amiga Marta: “Marta, Marta, tu te inquietas e te agitas por muitas coisas; no entanto, pouca coisa é necessária, até mesmo uma só” (Lc 10, 41-42).
Jesus, o homem novo, com seu Espírito nos faz participar do seu mesmo vigor para enfrentar o combate contra a tentação de nos dobrarmos sobre nós mesmos, como o primeiro Adão que ainda vive dentro de nós, e para nos abrirmos com amor e confiança filial ao Pai.
Seu combate no deserto no Getsêmani é também nosso combate, sua vitória sobre a morte é também nossa vitória, e temos a graça de viver com a sua mesma liberdade de filhos e filhas.
Recolhendo o profundo ensinamento dos Padres da Igreja sobre o caminho espiritual do batizado em Cristo, São Bento propõe ao monge aprender a nada antepor ao amor de Cristo (Regra de São Bento 4, 21;72, 11), para assim tornar-se verdadeiramente “monge”, termo que em grego se diz “monakós”, do substantivo “monos”, que significa “um – unificado”.
Este é também o projeto de vida e a vocação de todo cristão e cristã do nosso tempo, pois isto é a graça e o apelo para toda pessoa chamada pelo Senhor, desde Abraão, o amigo de Deus; ele que foi apelidado de “nosso Pai na fé”, enquanto não somente foi escolhido por Deus para dar início ao povo da aliança, mas sobretudo por sua experiência de fé incondicionada, que faz dele o exemplo protótipo do caminho com Deus de todo crente.
A fé de Abraão e de Sara se traduz em fecundidade que vem de Deus: recompensa divina para eles e para todos.
Assim a vida orientada totalmente para Cristo, e, em Cristo, para o Pai, se torna fecunda e criadora, como fecundo e criador é sempre o amor autêntico. É a história dos discípulos, que Jesus envia como ovelhas em meio a lobos, mas com o convite urgente de não temer (Mt 10, 26.28), enquanto atuam no estilo da gratuidade de Jesus e com o poder de libertar de toda doença e escravidão (Mt 10,8-9). É a historia de inúmeros santos discípulos e discípulas de ontem e de hoje, conhecidos e desconhecidos aos homens mas guardados por Deus.
A total dedicação a Deus de todas as próprias energias e expectativas gera igual medida no coração em relação aos irmãos.
A mulher da localidade de Sunam que acolheu em sua casa Eliseu, reconhecendo nele um homem de Deus, recebe do profeta a promessa de um filho: uma gratuidade gera outra gratuidade (2 Reis 4, 9.16). Até um copo de água fresca, dado ao mais pequenino dos discípulos de Jesus, recebe como recompensa a inimaginável comunhão com o próprio Jesus e com o Pai: “Quem vos recebe, a mim me recebe; e quem me recebe, recebe o que me enviou” (Mt 10, 40).
Não foram testemunhas do milagre desta surpreendente presença de Deus no meio de nós e da sua inexaurível fecundidade, mulheres simples e de grande fé como as bem-aventuradas Madre Teresa de Calcutá e Madre Dulce?
“Ao Senhor, eu cantarei eternamente o vosso amor” (Salmo responsorial).