Por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração
Apresentamos o comentário à Liturgia da Palavra do 20º domingo do Tempo Comum – Is. 56,1.6-7; Rm 11,13-15;.29-32; Mt 15,21-28 –, redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes – São Paulo). Doutor em liturgia pelo Pontificio Ateneo Santo Anselmo (Roma), Dom Emanuele é monge beneditino camaldolense.
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20° DOMINGO DO TEMPO COMUM –A
Mulher, grande é a tua fé!
Leituras: Is. 56,1.6-7; Rm 11,13-15;.29-32; Mt 15,21-28
“Mulher, grande é a tua fé! Seja feito como tu queres!” E desde este momento sua filha ficou curada. (Mt 15,28).
Eis que por fim, esta mãe sofrida pela sorte da filha, esta mulher estrangeira e pagã, estranha ao povo de Israel, à sua dignidade de povo de Deus e à sua religiosidade, elementos que constituem a identidade e o orgulho dos judeus diante dos outros povos, com sua fé confiante e perseverante, conduz Jesus a superar toda discriminação das pessoas diante da aliança do Senhor, na base da raça, do sexo e da religião.
A cura imediata da filha é a prova visível da potência da fé dos simples de coração e da salvação que vem de Jesus. Assim como, ao contrário, por falta de fé dos seus concidadãos, Jesus tinha experimentado a impossibilidade de realizar algum milagre e cura em Nazaré (Mc 6,5-6).
Com a presença de Jesus, a fé nele constitui a única condição e a verdadeira maneira de participar na herança “dos filhos” de Abraão, e de pertencer ao povo de Deus. Paulo chegará a formular com clareza este eixo central da boa nova de Jesus, na carta aos Gálatas: “Abraão confiou em Deus e isso lhe foi anotado como crédito. Compreendei que filhos de Abraão são os que têm fé. A escritura previa que os pagãos obteriam justiça pela fé, e assim Deus antecipa para Abraão a boa noticia: ‘por ti, todas as nações serão abençoadas’. Assim os que crêem são abençoados com Abraão que teve fé” (Gl 3,6-9- trad. Bíblia do peregrino).
A fé não somente insere na linhagem espiritual de Abraão, fazendo dos que crêem filhos/as dele, mas os faz “filhos/as de Deus” pela união deles a Cristo, condição que não anula as distinções entre as pessoas, mas supera toda discriminação na única família de Deus. Nesta única família, unida pela mesma fé, se realiza a promessa da fecundidade feita por Deus a Abraão: “Vós todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus, pois, todos vós, que fostes batizados em Cristo, vos vestistes de Cristo. Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois vós sois um só em Cristo Jesus. E se vós sois de Cristo, então sois descendentes de Abraão, herdeiros segundo a promessa” (Gl 3,26-29).
A visão do apóstolo nos oferece a perfeita realização da profecia de Isaías (Is 56,1.6-7- primeira leitura) sobre a acolhida dos pagãos em Jerusalém, cidade santa de Deus, a incorporação deles no povo de Deus, e a participação até o culto no templo, cume da identidade dos israelitas e seu direito exclusivo. Na pessoa de Jesus o templo se torna “casa de oração para todos os povos” (cf. Mt 21,13; Jo 2,19-22), posto que Ele, Jesus, é o verdadeiro o templo vivo.
Talvez não nos surpreenda muito a escassa sensibilidade dos discípulos diante da imploração sofrida da mãe da menina doente, que chega a ponto de pedir para que Jesus simplesmente a e para não mais incomodá-los (Mt 15,23). A mesma atitude eles tinham expressado diante do povo faminto, que estava seguindo e escutando a Jesus havia três dias (cf Mt 14,15).
O que nos toca profundamente, porém, é o silêncio inicial com que Jesus reage ao grito implorante da mulher: “Senhor, filho de Davi, tem piedade de mim: minha filha está cruelmente atormentada por um demônio. Mas Jesus não lhe respondeu palavra alguma” (Mt 15,22-23). Trata-se do mesmo Jesus que, não só toma cuidado e cura todo doente que o procura, mas que mais de uma vez, toma ele mesmo a iniciativa de curar uma pessoa, sem que ela tivesse até mesmo manifestado algum pedido de socorro! Todo mundo lembra, por exemplo, da cura da mulher encurvada, efetuada na sinagoga em dia de sábado (cf. Lc 13,10-17), ou a cura do homem da mão paralisada, nas mesmas condições (cf. Lc 6,6-9).
O misterioso silêncio inicial de Jesus, com certeza estimula a insistência da mulher. Sobretudo nos deixa vislumbrar o mistério do “tempo oportuno”, preordenado pelo Pai, em vista da plena manifestação da ação de Jesus como Messias e salvador. Aquele tempo que São João chama de a “hora de Jesus”, e que o próprio Jesus espera com ansiedade e determinação, enquanto se identifica com sua paixão, morte e ressurreição.
Por ocasião das núpcias de Caná ele responde com determinação à sua mãe que o solicitava a intervir em prol dos noivos que se encontravam em dificuldade: “Que queres de mim mulher? Minha hora ainda não chegou” (Jo 2,3-4). A fé confiante de sua mãe, faz com que de fato Jesus “antecipe” a sua hora: “Sua mãe disse aos serventes: “Fazei tudo o que ele vos disser” (2,5). A água transformada em vinho marcou o inicio dos sinais de Jesus, manifestou a sua “glória “e despertou a fé dos discípulos. (cf Jô 2,11-12).
No encontro de Jesus com a mulher pagã, assim como nas núpcias de Caná, nos deparamos com a mesma pedagogia divina acerca dos tempos de desenvolvimento da semente do reino. Tempos estes que só o Pai conhece. Jesus assume esta mesma pedagogia do Pai e ensina aos discípulos a assumi-la na própria vida. No caminho espiritual, a espera, e até mesmo os atrasos, dizem os Padres da Igreja, aumenta o desejo e faz com que se chegue a encontrar o amado com maior intensidade e alegria.
A capacidade de esperar na fidelidade de Deus e de perseverar na esperança comprova a qualidade da fé e do amor. “Os desejos santos crescem com a demora; mas se diminuem com o adiamento, não são desejos autênticos”, afirma São Gregório Magno (Hom. sobre os evangelhos, 25, 4-5; em Lit das Horas Vol. 3, 1436).
A insistência perseverante na oração filial, à qual nos convida Jesus, não é uma barganha comercial com Deus, com o intuito de dobrá-lo às nossas supostas necessidades ou desejos. É a expressão do amor confiante que alcança o coração do Pai. E Ele providencia o que é melhor para seus filhos e filhas. “Pedi e vos será dado; buscai e vos será aberto; pois todo o que pede recebe; o que busca acha e ao que bate se lhe abrirá… Ora se vós, que sois maus sabeis dar boas coisas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai que está nos céus dará coisas boas aos que lhe pedem” (Mt 7,7-8.11). Pode-se notar que S. Lucas, em lugar de “coisas boas”, coloca “o Espírito santo”. Isto diz que o Pai nos concede como dom mais precioso o seu próprio Espírito, e com o Espírito a verdadeira relação filial para cumprir sua santa vontade.
O exemplo dos grandes amigos de Deus e potentes intercessores para o povo junto dele, nos abrem o caminho na direção desta atitude interior. Abraão (Gn 18,17-33), Moisés (Ex 32,7-14), e o próprio Jesus, que pela sua submissão ao Pai foi arrancado do poder da morte (cf. Hb 5,7) e agora, glorificado, vive para sempre junto do Pai e intercede por nós (cf. Hb 7,25). A mulher cananéia, declara Jesus, pertence a esta família de autênticos filhos e filhas de Deus e de potentes intercessores: “Mulher, grande é a tua fé. Seja feito como tu queres!”.
Uma segunda razão ainda mais complexa daquela do silêncio inicial de Jesus está no reconhecimento da prioridade de Israel no anúncio do reino de Deus, segundo a Aliança estabelecida com os pais e as promessas feitas a Abraão, aos patriarcas e aos profetas. O reconhecimento desta prioridade de Israel, junto com seu aperfeiçoamento na comunidade nascida da cruz de Cristo, é um critério basilar de toda a Escritura. Isso determina a unidade do projeto salvífico de Deus que se manifesta na unidade do Antigo e do Novo testamento. Segundo a fé cristã, Jesus é o centro e o cumprimento deste plano divino, que faz da história humana a história da realização do projeto salvífico de Deus, a história da salvação.
O segundo passo de Jesus no seu diálogo com a cananéia o afirma: “Eu fui enviado somente às ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15,24).
Correntes consistentes do pensamento entre os letrados e as autoridades religiosas de Israel tinham transformado a prioridade da eleição e a missão de testemunha de Israel, derivante da aliança, em “privilegio exclusivo”, e a observância material das normas da Torá, em mecanismos automáticos de salvação. Contra estas presunções reagem os profetas e o próprio Jesus, que, enquanto reconhece a primazia da eleição de Israel, derruba as barreiras impróprias erigidas pelos homens, colocando ao invés a fé da pessoa no centro da relação com Deus.
A mesma comunidade dos discípulos de Jesus, porém, teve que trilhar um longo caminho para superar o preconceito contra os pagãos, e precisou de uma longa viagem interior iluminada pelo Espírito Santo, como atestam os Atos dos Apóstolos e as Cartas de Paulo, para entrar definitivamente na perspectiva universalista de Jesus. A redação do texto de Mateus, proclamado hoje parece refletir a fadiga inicial da mesma comunidade.
A tentação de se considerar exclusivos depositários da verdade do Senhor está hoje totalmente ausente das nossas comunidades? Somos acolhedores das pessoas que estão em busca do sentido da vida, com os mesmos sentimentos de generosa acolhida que Jesus Ressuscitado transmitiu aos discípulos?
A narração do encontro com a mulher pagã, nos oferece em maneira plástica as etapas e a gradualidade do caminho percorrido pelo próprio Jesus, e que se torna exemplar pelos discípulos: do silêncio inicial, à menção dos pagãos como “cachorinhos”, à insistência perseverante da mulher, até a proclamação da grandeza da sua fé, que abre a porta à salvação expressa na cura da filha.
Esta é de fato uma perspectiva muito parecida com aquela que Jesus exalta no centurião romano (Mt 8,10-12).
A fundamentação da pertença ao reino de Deus na fé e sua extensão de Israel aos pagãos e a todos os seres humanos em Cristo, para que nele tenham salvação, constituem o âmago do evangelho do Novo Testamento e a herança essencial da Igreja de todos os tempos. Israel e os pagãos recebem em igualdade de condições a misericórdia de Deus, e delas vivem (Rm 11,32).
Isto, todavia, se encontra com o mistério da recusa por parte da maioria do povo de Israel, primeiro destinatário das promessas de Deus. O “pequeno resto” que aceita, fica como testemunha da fidelidade de Deus e da esperança alimentada por todos em Cristo.
O feito da recusa de Israel, junto com a permanência da sua eleição e missão, interpelará ao longo dos séculos e até hoje, a consciência da Igreja num nível teológico, assim como marcará as relações sociais e religiosas entre os cristãos e os judeus, muitas vezes conflituosas, até as tragédias do anti-semitismo do século vinte.
Paulo, mesmo na angústia da sua consciência de filho de Israel e discípulo de Jesus, proclamado Messias e Senhor de toda a humanidade, declara com força: “os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis” (Rm 11,29 ). Os capítulos 9-11 da carta aos Romanos, da qual provêm a segunda leitura de hoje, dá testemunho deste tormento interior diante do duplo mistério, da recusa de Israel por uma parte e da fidelidade absoluta de Deus à sua aliança com os pais de Israel e de Jesus.
O Concílio Vaticano II, na Constituição Dei Verbum, pôs em luz mais uma vez a unidade e a irrevogabilidade da Aliança de Deus e seu cumprimento pleno em Cristo: a Igreja está caminhando nos trilhos de Israel rumo ao cumprimento do reino de Deus com a vinda gloriosa de Cristo.
Foi superada definitivamente a idéia teológica, difusa em certos ambientes cristãos, e que teve também graves consequências práticas na história, que a Igreja “substituiu” Israel no plano de Deus.
A Declaração “Nostra Aetate” do mesmo concílio, reafirmou em maneira clara como “a Igreja de Cristo reconhece que os primórdios da fé e de sua eleição já se encontram nos patriarcas, em Moisés e nos profetas, segundo o mistério salvífico de Deus”. Reconhece a existência de “um grande patrimônio espiritual comum aos cristãos e aos judeus”, e por isso encoraja ambas as partes a fomentar e aprofundar o conhecimento e o apreço recíproco. Impelida pelo amor evangélico, reprova toda perseguição contra os judeus, como contra quaisquer homens, e qualquer manifestação anti-semita, (NAE n. 4).
O papa João Paulo II, além de visitar a Sinagoga de Roma em 1986, pela primeira vez, por parte de um papa, chamou os judeus de “nossos irmãos maiores”, não por um ato de gentileza formal devida à hospitalidade que estava recebendo, mas como reconhecimento solene das comuns raízes nas quais afunda o mistério de Israel e o da Igreja.
O magistério pastoral de João Paulo II, assim como o do papa Bento XVI, através de gestos de alto valor simbólico e dos seus ensinamentos, continuam encorajando os cristãos a recuperar o sentido da comum pertença ao único desígnio salvífico de Deus, e por isso a instaurar também novas e fraternas relações no comum testemunho ao amor de Deus.
Tudo isso faz parte da maneira de ser cristãos hoje, da nossa espiritualidade, do nosso estilo de vida, como filhos de Abraão e irmãos no Senhor.
ZENIT – São Paulo, 11.08.2011