Por Gabriel Frade, professor de Liturgia e Sacramentos
SÃO PAULO, quinta-feira, 2 de junho de 2011 (ZENIT.org) – Apresentamos o comentário à liturgia do Domingo da Ascensão do Senhor – At 1,1-11; Salmo: 46 (47),2-3.6-7.8-9; Ef 1,17-23; Mt 28,16-20–redigido pelo professor Gabriel Frade. Natural de Itaquaquecetuba (São Paulo), Gabriel Frade é leigo, casado e pai de três filhos. Graduado em Filosofia e Teologia pela Pontificia Universitas Gregoriana (Roma), possui Mestrado em Liturgia pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora D’Assunção (São Paulo). Atualmente é professor de Liturgia e Sacramentos no Mosteiro de São Bento (São Paulo) e na UNISAL – Campus Pio XI. É tradutor e autor de livros e artigos na área litúrgica.
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“E eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos!” (Mt 28, 20)
Estamos nos aproximando da grande Solenidade de Pentecostes. A Igreja, através da liturgia, quarenta dias após a Páscoa nos prepara e nos encaminha para entrarmos no Mistério Pascal do Senhor e, de modo particular neste tempo, para recebermos o grande fruto desse Mistério: o Espírito Santo.
A primeira leitura apresenta o início do livro dos Atos dos Apóstolos, onde o evangelista Lucas narra os fatos que se deram após a ressurreição de Jesus. Nesse relato o autor frisa as inúmeras “provas incontestáveis” que Jesus – descrito como o vivente (v. 3); cf. Ap 1,18 – dera aos seus discípulos ao longo de quarenta dias para mostra-lhes que era ele mesmo, que não se tratava de um fantasma (cf. Lc 24,36ss).
A menção ao número de quarenta dias, mais do que uma alusão histórica é provavelmente um número simbólico: recorda os quarenta dias de Moisés na montanha (Ex 24,18; 34,28; Dt 9,9) e os quarenta dias de Elias peregrino (1 Rs 19,8).
Apesar dos apóstolos terem presenciado tantas maravilhas feitas por Jesus durante seu ministério e de Jesus agora apresentar-se Ressuscitado diante deles, os discípulos ainda não entendiam: raciocinavam apenas de modo humano: “Senhor é agora o tempo em que irás restaurar a realeza em Israel?” (v. 6).
De modo análogo, o povo de Israel havia passado por processo semelhante: apesar de ver os portentos de um Deus que o livrou da morte, ao atravessar o Mar a pé enxuto e ao destruir os carros do faraó (cf. Ex 14,1ss) ainda não compreende o plano de Deus. Diante do atraso de Moisés na montanha, o povo se desvia e vai prestar culto ao bezerro de ouro (cf. Ex 32,1ss), pensa ainda no Egito e procura meios humanos para elevar-se até um deus mais afeito aos raciocínios humanos.
No lugar alto, isto é na montanha, lugar privilegiado de encontro com Deus, Moisés conversa com o Deus das alturas, o Deus inacessível, Transcendente, que na sua condescendência, ao invés, ‘desceu’ ao encontro de seu povo para libertá-lo, para fazê-lo subir da terra do Egito: “Vai [Moisés] desce [da montanha], porque o teu povo, que fizeste subir da terra do Egito, perverteu-se…” (Ex 32,7).
O homem mais uma vez se distancia da lógica de Deus e “desce” às planícies da idolatria e da descrença. Está impossibilitado de subir até Deus.
É preciso esperar – “Não compete a vós conhecer os tempos e os momentos que o Pai fixou […]” (v. 7) – que o homem-Deus Jesus reabra os caminhos: “Os onze discípulos caminharam para a Galiléia, à montanha que Jesus lhes determinara. Ao vê-lo, prostraram-se diante dele. Alguns, porém, duvidaram…”. (Evangelho. vv. 16-17)
Apesar das fraquezas humanas dos discípulos do relato evangélico, mas também dos discípulos de todos os tempos que, aliás, Deus em sua onisciência já conhece, o Senhor não volta atrás: “Mas recebereis uma força, a do Espírito Santo que descerá sobre vós […]” (Primeira leitura, v. 7).
Subir, descer.
São categorias humanas, imagens que revelam mais do que a primeira vista parecem: quem nunca esteve ‘no fundo do poço’ ou, ‘para baixo’? E ainda: quem não tem algum conhecido que ‘subiu na vida’?
Mais do que a realidade concreta, isto é, a ação material do descer ou subir, essas palavras assim colocadas querem expressar situações amplas e, nem por isso, menos concretas!
Falar então da Ascensão de Jesus – e o falamos todos os domingos quando pronunciamos no Credo, isto é, na profissão de fé, as palavras “subiu aos céus e está sentado à direita de Deus Pai todo poderoso” – terá qual significado para nossa vida?
A liturgia deste domingo nos impele a fazer alguma breve reflexão.
Na Igreja antiga, o Credo, muito mais do que uma “fórmula mágica”, ou um mero “conjunto de dogmas”, ao qual devemos dar satisfação – temos que “sabê-lo a memória”, mas não sabemos ao certo porque o dizemos na missa dominical! – era considerado o compêndio de toda a Palavra de Deus.
Embora tenhamos excelentes instrumentos disponíveis para conhecer melhor o fato objetivo do nosso crer, expresso em nosso Credo[1], corremos um sério risco de não compreendermos mais certas realidades de nossa fé[2].
Há o risco de um nominalismo, isto é, há a possibilidade muito séria de a Palavra por excelência tornar-se apenas, como diria o poeta William Shakespeare “palavras, palavras, palavras”[3], algo completamente desprovido de sentido.
Certamente não é o caso da liturgia como um todo, e muito menos da liturgia da Palavra: essas têm um sentido muito profundo.
Porém, assim como a imagem do livro fechado descrita em Apocalipse (cf. Ap 5,1-5) – segundo alguns exegetas, o Apocalipse é um livro que contém uma linguagem litúrgica –, a liturgia na sua totalidade é “um livro”, que é preciso que alguém possa abri-lo para nós, para o nosso entendimento e vivência.
Era o que a primeira geração de cristãos procurava fazer nos primeiros séculos da Igreja. São Justino – celebrado recentemente no calendário litúrgico – era um destes cristãos da primeira geração.
Ele, que era um simples leigo, procurava – partindo do dom gratuito do Espírito – compreender e viver a sua fé: “para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos dê o espírito de sabedoria e de revelação […] que ele ilumine os olhos de vossos corações, para saberdes qual é a esperança que o seu chamado encerra […]” (Segunda leitura: Ef 1, 17.18;).
Felizmente, a história nos legou alguns escritos de S. Justino. Para o que nos interessa de modo particular, há uma bela passagem na qual S. Justino procura interpretar o salmo 24 (23) à luz da Ascensão do Senhor
“Levantai, príncipes, vossas portas; levantai, portas eternas, e entrará o rei da glória. Quanto Cristo ressuscitou de entre os mortos e subiu ao céu, os príncipes estabelecidos por Deus nos céus, receberam ordem de abrir as portas dos céus, para que ele que é o rei da glória entrasse e subisse para sentar-se a direita do Pai, até pôr seus inimigos como escabelo de seus pés. Porém, quando os príncipes dos céus o viram sem beleza, sem honra e sem glória na sua figura, não o reconheceram e exclamaram: ‘Quem é este rei da glória?’.”.
São Justino com esse escrito singelo nos oferece uma possibilidade de compreensão da gratuidade extraordinária da liturgia deste domingo. De fato, a Oração Eucarística, mais precisamente o prefácio da Ascensão, nos mostra essa enorme gratuidade divina:
“Vencendo o pecado e a morte, vosso Filho Jesus, Rei da Glória, subiu (hoje) ante os anjos maravilhados ao mais alto dos céus. E tornou-se o mediador entre vós, Deus, nosso Pai, e a humanidade redimida, Juiz do mundo e Senhor do universo. Ele, nossa cabeça e princípio, subiu aos céus, não para afastar-se de nossa humanidade, mas para dar-nos a certeza de que nos conduzirá à glória da imortalidade
Jesus cumpre na sua Pessoa as profecias do Antigo Testamento (cf. Dn 7,13). Ele, que ao assumir nossa condição humana, reduziu-se, esvaziou-se a ponto de perder toda formosura (cf. Is 53,2; Fp 2,7), oferecendo-se em sacrifício pelos pecados da humanidade.
Deus o exaltou grandemente, fazendo-o sentar-se à sua direita no santuário (cf. Hb 10,11ss). Curiosamente, não é um acaso que na igreja construção quase sempre existam degraus para se subir ao altar: assim como Jesus subiu ao Pai, toda a Igreja na celebração ritual litúrgica, no seu hoje, sobe realmente com o seu Senhor até o Pai: “Por Cristo, com Cristo, em Cristo, a vós, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória, agora e para sempre. Amém” (Doxologia).
De fato, o Senhor subiu aos céus, não para se distanciar de nós, mas justamente para estar conosco: “E eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos!” (Mt 28,20). E essa presença é particularmente sentida em sua Palavra proclamada na liturgia e na Santa Eucaristia, pão e vinho eucaristizados.
Em Jesus, Cabeça da Igreja, nossa humanidade já está no seio da Santíssima Trindade. Em Jesus – como diria Santo Irineu – o homem é divinizado.
Nós cristãos, somos chamados no nosso hoje, a reconhecer de fato o grande chamado ao qual Deus nos destinou: não só “ver” o rosto do Pai, mas viver em plena comunhão com ele no nosso hoje.
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[1] O Catecismo da Igreja Católica (CIC) nos ajuda muito nisso. Sobre a subida do Senhor aos céus, veja-se, por exemplo, o CIC nn. 659-663.
[2] Mais do que nunca, o ciclo Pascal nos leva a crer que é urgente uma iniciação cristã séria, mesmo para aqueles que já receberam os sacramentos da iniciação cristã, mas que, por motivos vários, afastaram-se de uma fé adulta. Nesse sentido, o conhecimento e a aplicação concreta do RICA (Ritual de Iniciação Cristã de Adultos) nas paróquias poderá preencher várias lacunas.
[3] Hamlet. Ato II, Cena II, 190.
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[Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes – São Paulo), que originalmente assina esta Seção, está em viagem à Itália para compromissos de sua comunidade. Ele retorna em quatro semanas. Os comentários deste período estão sob sua curadoria.]