Por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração
Apresentamos o comentário à liturgia do próximo domingo – IV do Advento (Ano A) Is 7,10-14; Rm 1,1-7; Mt 1,18-24 – redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes – São Paulo). Doutor em liturgia pelo Pontificio Ateneo Santo Anselmo (Roma), Dom Emanuele, monge beneditino camaldolense, assina os comentários à liturgia dominical, sempre às quintas-feiras, na edição em língua portuguesa da Agência ZENIT.
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IV Domingo do Advento – A
Leituras: Is 7, 10-14; Rm 1, 1-7; Mt 1, 18-24
“A origem de Jesus Cristo foi assim” (Mt 1,18a).
É uma afirmação muito simples. Ou pelo menos tal parece à primeira vista.
Parece que irá descrever em detalhes “como” aconteceu o nascimento de Jesus, registrando cuidadosamente o acontecimento. Porém, se ficarmos mais atentos ao texto, talvez descubramos algo mais profundo. O evangelista nos conduz gradativamente a uma aproximação não só das circunstâncias exteriores do nascimento de Jesus, ao “como”, mas sobretudo do descobrimento de seu “significado” teológico e existencial, seja para Israel, para a humanidade e para cada homem e mulher que ao longo do tempo receberão a “boa nova” (= evangelho, em grego) de tal evento. O que significa a origem de Jesus para nós, para mim, hoje?
A palavra “origem” (= gênesis, em grego) nos convida a contemplar o movimento da história de Deus com a humanidade desde os seus inícios (o livro do “Gênesis” é o primeiro livro da Escritura). A partir dessa contemplação, subimos até as misteriosas profundezas do coração de Deus, à fonte divina do amor do qual brotou seu plano para nos fazer partícipes, por graça, de sua própria vida.
A narração da origem/nascimento de Jesus, na visão teológica de Mateus, é o ponto final no qual desemboca a história da humanidade inteira. O nascimento de Jesus é apresentado como o cumprimento do plano que Deus traçara para a humanidade, plano que atinge seu ápice, mesmo através das vicissitudes complicadas das gerações, não raramente marcadas pelo pecado. Mas seu nascimento é também o início da etapa final desta mesma história, a sua plenitude na qual nós estamos vivendo por graça.
Mateus nos revela este sentido teológico e espiritual através da chamada “genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi e filho de Abraão” (Mt 1,1), colocada por ele no início do seu Evangelho como uma porta que nos introduz a seu sentido geral. O movimento da genealogia nos põe na grande aventura humana e, ao mesmo tempo, na trajetória de fé da Virgem Maria e de José seu esposo, ambos chamados a colaborar misteriosamente no cumprimento daquela história santa. É necessário olhar para a unidade entre a genealogia das gerações que precederam o nascimento de Jesus e este evento central de toda a história santa.
A palavra de Deus deste quarto domingo de Advento projeta já uma grande luz sobre o mistério da Encarnação do Verbo de Deus e sobre sua perene atualidade para todos. A “carne” que o Verbo assume, fazendo sua casa no meio de nós, não é somente a carne biológica de Maria. É toda a realidade humana, cultural, espiritual dos antigos pais de Israel e da humanidade. Por isso a Igreja ao celebrar o Mistério Pascal de Jesus na liturgia dos domingos, nos propõe sempre juntas as leituras do Antigo e do Novo testamento.
Nossa fé proclama e celebra no Natal o Verbo de Deus “verdadeiro Deus e verdadeiro homem”.
Com a linguagem e a estrutura simbólica do texto da genealogia, o evangelista nos diz que a história de Israel e da humanidade é uma história complicada: ela está ferida pelo pecado e pelas infidelidades à aliança. Deus, porém, é fiel às promessas feitas aos patriarcas e aos profetas, em particular a Abraão e a Davi, no seu compromisso de conduzir todos à salvação através do Messias nascido da linhagem real do próprio Davi e da fé de Abraão, no qual todos os povos hão de receber a benção.
A longa fila dos antepassados de Jesus, aos quais ele está ligado através de José, parece quase nos dizer que o Verbo de Deus foi assumindo carne “aos poucos” ao longo da história de Israel e da humanidade, através de tantas pessoas e das suas complicadas vicissitudes. Mas “quando enfim chegou a plenitude do tempo, enviou Deus o seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção filial”(Gl 4,5). No Filho, pela fé e pelo batismo, todos recebem a mesma graça e dignidade de filhos e filhas do Pai, sem discriminação (Gl 3,25-29).
A “origem/nascimento” de Jesus Cristo está no centro da história: orienta a fase que a precede, assim como continua atuando no presente, ou melhor, até seu cumprimento escatológico, o qual, com toda a Igreja e a humanidade, ansiamos.
Contemplando com estupor o mistério de Jesus, com Paulo podemos afirmar: “tudo foi criado por ele e para ele. Ele é antes de tudo e tudo nele subsiste. É a cabeça da Igreja, que é o seu corpo” (Cl 1,16-18). Que grande luz a contemplação do mistério de Jesus projeta sobre nosso caminho, ao seu seguimento! Contemplar com fé o menino Jesus na pobreza de Belém ou na simplicidade dos nossos presépios, deveria suscitar sentimentos bem mais profundos e ricos do que uma carinhosa compaixão pela sua pobreza e humildade.
O encantamento frente à história de Deus conosco em Jesus – assim como diante dos acontecimentos às vezes complicados mas sempre surpreendentes da nossa vida pessoal, familiar, eclesial – é a atitude e a experiência fundamental para encontrar e reconhecer o Senhor, que sempre está próximo. “Agora e em todos os tempos, ele vem ao nosso encontro, presente em cada pessoa humana, para que o acolhamos na fé e o testemunhemos na caridade, enquanto esperamos a feliz realização de seu reino” (Prefácio do Advento I A). É a resposta mais apropriada à misteriosa iniciativa de Deus que nos precede, nos acompanha e nos chama para que nos tornemos seus parceiros, livres e obedientes, do seu grande designo de vida.
O famoso filósofo e místico judeu Abraham J. Heschel, um homem que conhecia profundamente a escritura e deixou um vivíssimo testemunho de autêntica experiência de Deus, escreveu: “Os profetas não falam tanto do interesse do homem por Deus, como do interesse de Deus pelo homem” (Deus em busca do homem, pg. 517). Esta afirmação vale tanto pelo Antigo como para o Novo testamento. Nossa procura de Deus, na realidade é uma tentativa para responder à sua procura por nós!
Esta é a história de Maria e de José que nos oferece Mateus no Evangelho de hoje. Um drama altamente humano e divino, no qual Deus se revela e atua mais uma vez de maneira surpreendente. A história simples de dois jovens israelitas da Galileia de dois mil anos atrás – que com o entusiasmo e as esperanças de todos os jovens noivos, têm já programado o próprio casamento e o próprio futuro – se torna de repente o lugar e o tempo onde irrompe o Deus dos antigos pais e dos profetas de Israel e que pretende realizar seu plano de encontro e salvação em favor de toda a humanidade. Deus chama este jovem casal a despojar-se do próprio presente e do próprio futuro, a dilatar ao infinito de Deus o próprio ninho de amor, e a tornar-se parceiros Dele por todos e em nome de todos. Mas é também a história de cada um e cada uma de nós.
Mateus com muita discrição coloca Maria apenas no pano de fundo desta história humana e divina, lembrando que ela “ficou grávida pela ação do Espírito Santo, antes de viverem juntos” (1,18). Na lógica da narração de Mateus, no primeiro plano se destaca a pessoa de José, o descendente de Davi. Lucas, por outro lado, nos descreve o caminho interior através do qual Maria chega a se submeter com fé incondicionada ao anúncio inesperado do anjo sobre sua misteriosa maternidade do filho do Altíssimo e a entregar-se sem reserva ao Senhor: “Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo tua palavra” (Lc 1, 38). O caminho interior de José não pôde ser diferente, nem separado daquele de Maria. São chamados juntos a colaborar ao mesmo projeto de Deus, cada um na sua maneira, mas trilhando o mesmo caminho de fé.
José de verdade é homem de fé (“justo”), que procura entender e cumprir a vontade de Deus e agir segundo as prescrições da lei na sua relação com Maria, sua amada noiva. Ele também fica vivendo o drama de um acontecimento que não se deixa compreender na lógica das relações humanas (Mt 1,19). Com a misteriosa intuição reveladora que na linguagem bíblica têm os sonhos (cf. Gen 28: o sonho de Jacó; Gen 40: os sonhos de José), uma luz que vem de Deus ao final fornece a José a chave para interpretar sua situação e aquela de Maria na perspectiva de Deus, e lhe dá a coragem para superar o medo do ignoto e aceitar a inimaginável tarefa de ser parceiro de Deus em prol do seu povo (Mt 1,20-21).
A narração concisa do evangelista não pode esconder o trabalho interior sofrido, pelo qual José passou para chegar à inteligência iluminada pelo Espírito de Deus e que o fez se render. Ele vive uma experiência nova de Deus e acaba fazendo uma viagem de iniciação à nova presença dele que o guiará ao longo da sua vida junto com Maria e Jesus. Este caminho conhecerá momentos exaltantes da alegria que brota de Deus (cf. Lc 2,16-18) e momentos de inquietação (Lc 2,33; 48), de dificuldade a compreender o que está de verdade acontecendo no Filho amado, em Maria e nele mesmo (Lc 2,19). Junto com ela José deverá aprender mais de uma vez a guardar tais acontecimentos no coração, meditando sobre eles (Lc 2,19;51). É o caminho de todo discípulo do reino de Deus. É o caminho que permite a nós também, como dizia Santo Ambrósio, participarmos na geração do Verbo de Deus pela fé, como Maria, como José.
Ao contrário do rei Acaz (1ª leitura), José, junto com Maria, aceita entrar no jogo de Deus. Mesmo frente à desconfiança do rei, Deus não abandona seu povo e promete que ele mesmo fará nascer de uma jovem mulher o rebento real, através do qual ele mesmo salvará seu povo. O nascituro, fruto da promessa de Deus, vai receber um nome que no seu simbolismo exprime o compromisso de Deus e a sua ação libertadora. “Pois bem, o próprio Senhor vos dará um sinal. Eis que uma virgem conceberá e dará à luz um filho, e lhe porá o nome de Emanuel – Deus está conosco” (Is 7,10-14).
Mateus destaca que a promessa de Deus tem seu cumprimento no nascimento de Jesus do seio de Maria, por obra do Espírito Santo (Mt 1,22-23). A tradição cristã, apoiando-se sobre uma tradução grega do texto hebraico, e sobretudo guiada pela luz da Páscoa, reconhecerá na virgem Maria o cumprimento da profecia sobre a jovem mulher de Is, 7,14. Desse modo se evidencia a unidade admirável da única história da salvação guiada por Deus, através da profecia do Antigo Testamento, do cumprimento na pessoa de Jesus e no Novo Testamento, da continuidade na vida da Igreja e de cada alma, até seu cumprimento definitivo na plenitude do reino de Deus no éscaton.
Paulo na Carta aos Romanos (2ª leitura), põe em evidência a consistência permanente desta trama divina da história, e como sua vocação e seu ministério apostólico estejam totalmente ao serviço do seu pleno desenvolvimento, a fim de que “trazidos à obediência da fé” pela pregação do Evangelho, todos os povos e as pessoas se tornem um canto de glória ao nome do Senhor.
Que cada um de nós, progredindo na conversão ao Senhor propiciada pelo Advento, possa chegar a cantar com verdade, junto com Maria e José, e acompanhados pelas vozes festivas da assembleia litúrgica do iminente Natal do Senhor: “O rei da glória é o Senhor onipotente; abri as portas para que ele possa entrar!” (Salmo Responsorial).