Por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração
Apresentamos o comentário à liturgia do próximo domingo – II do Tempo Comum Is 49, 3. 5-6; 1 Cor 1, 1-3; Jo 1, 29 -34 – redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes – São Paulo). Doutor em liturgia pelo Pontificio Ateneo Santo Anselmo (Roma), Dom Emanuele, monge beneditino camaldolense, assina os comentários à liturgia dominical, sempre às quintas-feiras, na edição em língua portuguesa da Agência ZENIT.
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II DOMINGO DO TEMPO COMUM
Leituras: Is 49, 3. 5-6; 1 Cor 1, 1-3; Jo 1, 29 -34
Com a semana que segue ao Batismo de Jesus, inicia-se o chamado Tempo Comum do ano litúrgico. Antes de entrar na reflexão sobre as leituras deste domingo, gostaria de oferecer uma breve introdução sobre o sentido teológico e espiritual deste tempo que, pela sua extensão, acompanha por meses o caminho espiritual da Igreja. Para valorizar de maneira apropriada este tempo, é preciso conhecer um pouco mais de perto a estrutura do ano litúrgico e os critérios que orientam a distribuição das leituras bíblicas nas celebrações.
O conhecimento destes dois elementos facilita a compreensão da Liturgia da Palavra proporcionada pelo Lecionário festivo e ferial e orienta a reflexão espiritual sobre os textos bíblicos que compõem a Liturgia da Palavra.
O Tempo Comum é constituído por 33/34 semanas, distribuídas entre o Batismo de Jesus e a Quaresma (primeiro período) e entre o domingo da Trindade e a solenidade de Cristo Rei (segundo período). O Tempo Comum não celebra um ou outro aspecto particular do mistério de Cristo, como acontece, por exemplo, com o Advento-Natal ou a Quaresma-Páscoa, mas celebra o mesmo mistério na sua globalidade. Realiza isso pela constante referência à páscoa que caracteriza os domingos, assim acompanhando e orientando o caminho pascal do povo de Deus no seguimento de Jesus, rumo ao cumprimento da história.
Dois elementos são fundamentais para compreender o significado e a importância espiritual e pastoral do tempo comum: o Lecionário e o Domingo.
O Lecionário é o livro litúrgico que proporciona as leituras bíblicas da Liturgia da Palavra de todas as celebrações e, como tal, não deveria ser substituído por um simples folheto. Os textos da sagrada escritura iluminam o mistério pascal de Cristo e o caminho da Igreja. Sendo Cristo o centro e o cumprimento da história da salvação, celebrada na liturgia e dinamicamente ativa na vida de cada fiel, a Igreja se torna sempre mais conforme ao seu Mestre e Esposo. A leitura semi-contínua dos Evangelhos marca o caminho dos domingos assim como dos dias de féria, seguindo sábios critérios bíblicos, litúrgicos e pedagógicos, que se encontram bem ilustrados na Introdução ao Lecionário Litúrgico, elaborado pela reforma promovida pelo Concílio Vaticano II.
A centralidade do Evangelho na Liturgia da Palavra reflete a centralidade de Cristo na história da salvação, que tem como sua primeira etapa de preparação profética, eventos, personagens e escritos do AT. O texto do Evangelho, de consequência, determina a escolha da primeira leitura, tomada do AT. Esta se caracteriza como promessa e profecia a respeito de Cristo e do texto do Evangelho. “O Novo Testamento está latente no Antigo e o Antigo se torna claro no Novo”, afirma a constituição do concílio Dei Verbum (n.16), repetindo uma famosa frase de Santo Agostinho. A segunda leitura, porém, geralmente composta de um texto das cartas de Paulo ou de outro apóstolo, ilumina a vida nova que anima o discípulo de Jesus pela ação do Espírito Santo e sua vocação a conformar-se sempre mais a Cristo. O novo Lecionário realiza o desejo do Concílio, que pedia para oferecer a todo o povo de Deus os tesouros da Sagrada Escritura em medida mais abundante (SC 51).
Na ação litúrgica a Palavra de Deus é acompanhada pela ação íntima do Espírito Santo que a torna operante no coração dos fiéis. “Por isso – afirma o Papa Bento XVI na Exortação apostólica Verbum Domini – para a compreensão da palavra de Deus, é necessário entender e viver o valor essencial da ação litúrgica. Em certo sentido, a hermenêutica da fé relativamente à sagrada escritura deve ter sempre como ponto de referência a liturgia, onde a Palavra de Deus é celebrada como Palavra atual e viva. A Igreja, na liturgia, segue fielmente o modo de ler e interpretar as Sagradas Escrituras seguido pelo próprio Cristo, quando, a partir do ’hoje’ do seu evento, exorta a perscrutar todas as Escrituras (cf. Ordenamento das leituras da missa, 3)” (VD 52).
As leituras do 2º Domingo do tempo ordinário constituem um exemplo muito claro desta visão de fé e da maneira de entender e viver a palavra de Deus e a liturgia.
O Evangelho de João (Jo 1, 29-34), com o testemunho do Batista que aponta para Jesus como o Cordeiro/Servo do Senhor que carrega sobre si mesmo o pecado, tirando-o do mundo inteiro e não somente de Israel (cf. Jo 2, 21-22), apresenta Jesus como cumprimento da profecia de Isaías (Is 49,3. 5-6). O profeta promete o envio do Servo por parte de Deus, por ele escolhido e fortalecido com seu espírito. O servo tem a missão de restaurar a liberdade e a unidade de Israel e de Judá e de tornar-se luz capaz de iluminar o caminho de todos os povos e salvá-los. Paulo, na carta aos Coríntios, coloca a si mesmo e o seu ministério apostólico na linha do Servo e do Cordeiro, lembrando seu chamado por Deus e seu apostolado entre os Coríntios, “santificados em Cristo Jesus, chamados a ser santos junto com todos os que, em qualquer lugar, invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Cor 1,2). A dimensão universal da salvação em Cristo será a nota específica da pregação da Boa-Nova do Novo Testamento, e da missão entregue por Jesus aos Apóstolos e à Igreja.
A celebração do Domingo, como dissemos, é o segundo elemento que caracteriza o tempo comum. No sentido literal, a palavra Domingo significa “dia do Senhor”, isso é, dia em que se celebra e se vive na comunidade dos discípulos a presença de Jesus, “Senhor”, enquanto vencedor da morte. Isso acontece sobretudo através da celebração da Eucaristia, que alimenta o povo de Deus com a dupla mesa do pão vivo da Palavra de Deus e do corpo de Cristo, e o constitui como corpo vivo de Cristo (DV 21). O Domingo, dia do Senhor, é desse modo igualmente dia da Igreja. Marca o início da nova história inaugurada por Cristo ressuscitado (primeiro dia), enquanto é, ao mesmo tempo, seu cumprimento e plenitude do descanso de Deus e do homem (oitavo dia). Sobre este assunto tão importante para a espiritualidade cristã e para a pastoral, gostaria de sugerir a meditação atenciosa da carta encíclica do Papa João II, “Dies Domini – O dia do Senhor” (1998), luminosa nos seus horizontes teológicos e espirituais e rica de sugestões pastorais.
Às vezes, o Tempo Comum é considerado como um “tempo menor”, um tempo “pouco significativo”. Pelo contrário, assim como a túnica sem costura de Cristo crucificado envolvia o seu corpo, assim também o tempo comum envolve o corpo e o tempo da Igreja, esposa de Cristo, e a faz habitar no jardim da ressurreição ao longo do ano inteiro. De semana em semana, ficam emergindo, como pérolas preciosas engastadas no tecido unitário do tempo, os domingos, que deixam brilhar a sóbria preciosidade dos dias feriais, escondidos na trama do cotidiano, mas coloridos pela luz da páscoa como fios de ouro.
A semana vive do respiro do Espírito recebido no domingo, e ela mesma se torna os dons colocados sobre a mesa do altar no dia de festa, e transformados por Cristo no seu corpo e no seu sangue vivificante. São Bento, o pai espiritual dos monges e das monjas, diz na sua Regra, que os instrumentos com que eles e elas trabalham durante a semana nos campos e nas oficinas do mosteiro têm o mesmo valor dos vasos sagrados do altar.
A Oração e o Trabalho, segundo o conhecido lema beneditino “Ora et Labora”, constituem, para cada cristão, duas faces indivisíveis do caminho cotidiano, animado pelo Espírito e vivenciado na presença de Deus. Esta consciência resgata o homem e a mulher do nosso tempo – tecnológicos e mercantilistas – das ambigüidades do progresso técnico e da posse de bens materiais, esperados como fonte da própria salvação, enquanto os submetem a novas formas de escravidão, de vazio interior e provocam o desgaste do meio ambiente, da natureza.
Para o discípulo e a discípula de Jesus, o cotidiano é a carne do festivo, e o festivo é a alma do cotidiano. Da mesma maneira como, no mistério do Verbo encarnado que acabamos de celebrar, a divindade vivifica a humanidade de Jesus e a sua humanidade nos permite encontrar sua divindade. Na relação pessoal com Cristo na Palavra, na Liturgia e no cotidiano, temos a graça de alimentar de maneira unitária o nosso caminho espiritual, caminho marcado por uma espiritualidade encarnada na vida de cada dia.
A oração eucarística 4ª tem uma maravilhosa estrutura que abrange as etapas da história da salvação inteira, do seu inicio até a vida de cada dia da comunidade. Ela envolve toda atividade do homem e da mulher na ação transformadora do Espírito, como parte integrante da ação de louvor e agradecimento a Deus, junto com o evento da morte e ressurreição de Jesus. Enquanto tal, esta oração eucarística interpreta muito bem e alimenta o sentido unitário da experiência cristã. Por isso é a mais apta a ser utilizada nas celebrações feriais durante o Tempo Comum e como fonte riquíssima de oração, de espiritualidade e de catequese. Infelizmente esta pérola da liturgia renovada fica quase que desconhecida – até mesmo por muitos padres! – pois é “sacrificada” em prol da oração eucarística 2ª, preferida nem sempre pela sua bela simplicidade, mas muitas vezes em nome da sua “brevidade”!
Não faz maravilha que esta visão unitária e nobre do cotidiano, proposta na pedagogia espiritual da Igreja através da liturgia, encontre certa dificuldade, em razão da nossa mentalidade atual.
O caminho espiritual fica fragmentado entre oração, vida moral, atividade profissional, serviço nas pastorais e empenho para dar testemunho cristão na sociedade civil. Falta muitas vezes um fio condutor que unifique os vários aspectos da existência dos homens e das mulheres cristãos no nosso tempo.
Somos filhos da mentalidade dos “efeitos especiais” e dos “produtos descartáveis”, substituídos rapidamente em toda atividade. Às vezes também pessoas devotas vão à procura de emoções fortes, em experiências supostamente “mais espirituais” do que o caminho alimentado pela Palavra de Deus e pela liturgia. É possível até mesmo encontrar quem nos ofereça “milagres ao vivo”, proporcionados por certas reportagens religiosas na TV. Tentações que acompanham o homem e a mulher religiosa desde sempre.
A liturgia exige e promove uma grande conversão de mentalidade, de coração e de pedagogia espiritual, para reconhecer que a força de Deus que nos salva se encontra no Verbo feito carne, nos gestos e nas palavras humanas dos sacramentos, no cotidiano animado pelo Espírito e vivenciado conforme seus impulsos interiores. “A carne é o eixo da salvação”, dizia o grande padre da Igreja do séc. 3º, Tertuliano.
Os concidadãos de Jesus em Nazaré não se escandalizavam por ser ele o filho do carpinteiro e membro de uma família da qual todo mundo conhecia os componentes? (cf. Mt 13, 53-58).
O próprio João Batista passa através da mesma tentação. No início da sua missão, narrada pelo evangelho de hoje, reconhece em Jesus “o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. Com humildade e coragem o indica a seus discípulos e ao povo como o verdadeiro mestre e messias a seguir. Ele pode atestar ter visto que sobre Jesus desceu o Espírito de Deus e que nele atua sua potência (Jo 1, 29 -34).
Na obscuridade da prisão, na vigília do sacrifício da sua vida por parte de Herodes por ter sido fiel à sua missão, é apanhado pela obscuridade ainda mais sofredora da dúvida: “És tu, aquele que há de vir ou devemos esperar um outro?” (Mt 11,2-3). O estilo de atuar por parte de Jesus lhe parece condescendente demais com pecadores e marginalizados, pouco “messiânico”, segundo o modelo do messias forte e de juiz implacável, imaginado e pregado por ele mesmo. Mas Jesus continua curando cegos, paralíticos e a Evangelizar os pobres. É assim que está presente nele o reino de Deus. E acrescenta: “Feliz aquele que não se escandaliza por causa de mim” (Mt 11,6). É a mensagem definitiva também para nós no início deste novo Tempo Comum, tão precioso!
ZENIT, 13/01/2011