Por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração
Apresentamos o comentário à liturgia do próximo domingo – I do Advento (Ano A) Is. 2,1-5; Rm 13,11-14; Mt 24,37-44 – redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes – São Paulo). Doutor em liturgia pelo Pontifício Ateneo Santo Anselmo (Roma), Dom Emanuele, monge beneditino camaldolense, assume os comentários à liturgia dominical a partir de hoje, sempre às quintas-feiras, na edição em língua portuguesa da Agência ZENIT.
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I Domingo do Advento – Ano A
Leituras: Is. 2,1-5; Rm 13, 11-14; Mt 24, 37 – 44
“Vinde, todos da casa de Jacó, e deixemo-nos guiar pela luz do Senhor” (Is 2,5)!
“Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo!” (Rm 13 14).
“Ficai atentos! Porque não sabeis em que dia virá o Senhor” (Mt 24,42)
Três gritos de amor e de admoestação saídos do coração do Senhor e ecoados com paixão pela Igreja nossa Mãe. Estas admoestações são para chamar nossa atenção, muitas vezes tomada pela aparente normalidade dos acontecimentos, tal como ocorreu aos concidadãos de Noé; elas se colocam para despertar as consciências atordoadas e adormecidas pelas coisas passageiras e superficiais, para nos estimular a nos renovarmos radicalmente, assumindo sempre mais a maneira de sentir, julgar e atuar do próprio Jesus na sua relação filial com o Pai e para conosco. Revestir-se de Cristo, segundo a eficaz expressão do Apóstolo, indica o processo da nossa progressiva identificação interior com Ele. Este processo, iniciado no batismo, quando nos foi entregue o símbolo da veste branca, vai se desenvolvendo até culminar na entrada, com o próprio Cristo, na festa do reino de Deus (Ap 7,9).
Os últimos domingos do ano litúrgico – que acabou de chegar à sua conclusão com a grande celebração do Senhor Jesus, Rei e juiz do universo – alimentaram a nossa esperança mostrando que para o Senhor está orientada não somente a grande história da família humana e da criação, mas também o caminho pessoal cotidiano de cada um, vivenciado na fé como seu discípulo e discípula.
A palavra deste primeiro domingo nos diz que o nosso “hoje” é também o “hoje” de Deus, aberto por ele em vista do futuro de novas possibilidades de vida e de relações: “Vinde, todos da casa de Jacó, e deixemos nos guiar pela luz do Senhor”. Nele também o mundo do homem e da mulher de hoje se torna a casa onde pessoas, povos, raças e religiões diferentes podem encontrar novamente o lugar da recíproca reconciliação e acolhida. Nele nossa vida de cada dia se torna a porta na qual ele fica batendo, para ser reconhecido, acolhido e assim partilhar com ele a mesa da amizade e da intimidade (Ap 3,20). Casa do homem e de Deus. É preciso estar atentos! Qualquer situação e momento pode ser a ocasião certa e a situação oportuna para receber sua visita, ouvir sua palavra, gozar da sua presença íntima e transformadora.
“Agora a salvação está mais perto de nós do que quando abraçamos a fé”. O caminho da fé é um processo dinâmico, sempre mais abrangente e capaz de unificar nossa existência pela forca interior do mesmo Espírito do Senhor. É uma verdadeira passagem das trevas do pecado e da preguiça espiritual para a luz e a fecundidade de uma vida nova. “A noite já vai adiantada, o dia vem chegando: despojemo-nos das ações das trevas e vistamos as armas da luz”.
O ano litúrgico, com sua constante referência à páscoa do Senhor, e através da linguagem própria de cada uma das suas etapas, alimenta a vida espiritual da Igreja e de cada cristão. É a partir desta intrínseca relação com o Cristo morto e ressuscitado através do ano litúrgico que devem encontrar a própria orientação e o próprio sentido toda iniciativa pastoral e toda forma de piedade comunitária e pessoal, como ensina o Concílio Vaticano II (SC 12,13,105) e como destaca o Papa Bento XVI na Exortação Apostólica recém publicada Verbum Domini – A Palavra do Senhor (n.52).
O Advento marca o início do novo Ano litúrgico. Mas este inicia a partir das alturas onde chegou o fim do precedente: o cumprimento de toda história da salvação e a glória do Senhor. Com o primeiro domingo, iniciamos um novo caminho de louvor e de agradecimento ao Pai, por Jesus Cristo morto e ressuscitado, fonte inesgotável de vida nova no Espírito Santo. Um caminho de profunda renovação, quase de novo nascimento pela força do Espírito, até chegar à maturidade da vida espiritual de homens e mulheres tornados adultos em Cristo.
Este dom do amor gratuito e salvador de Deus, que costumamos chamar com a venerável tradição cristã de “Mistério Pascal”, constitui o centro irradiante da história da salvação e por isso também do ano litúrgico, continuando a alimentar de domingo a domingo a vida da Igreja e a marcar o caminho de constante renovação de cada fiel. Assim a liturgia, através da íntima união entre a Palavra e a Eucaristia, como afirma a constituição Sacrosanctum Concilium, do Concílio Vaticano II, “é a primeira e necessária fonte da qual os fiéis atingem o espírito verdadeiramente cristão” (SC 14). É o dom que a Igreja pede ao Pai na oração depois da comunhão deste primeiro domingo de Advento: “A participação nos vossos mistérios nos ajude a amar desde agora o que é do céu e, caminhando entre as coisas que passam, abraçar as que não passam”. É o que destaca também o Papa na sua exortação apostólica: “A Eucaristia abre-nos à inteligência da Sagrada Escritura, como esta, por sua vez, ilumina e explica o Mistério eucarístico” (Verbum Domini. 55).
Talvez alguém, ao ouvir a palavra “Advento”, pense imediatamente no curto espaço de tempo que nos prepara ao Natal de Jesus. Idéia talvez reforçada pela vista dos arranjos natalinos que já enfeitam as lojas e as ruas das cidades ou os primeiros presépios que iniciam a ser montados com carinho nas famílias. Mas o Advento na linguagem litúrgica e na experiência da Igreja é bem mais rico de sentido espiritual e existencial. A palavra Advento provém do latim adventus, que significava a “vinda” e a visita” de uma autoridade, como o rei ou o imperador, a uma cidade a quem “manifestava” assim sua atenção e sua benevolência para com o povo.
Transferida pela comunidade cristã do âmbito social ao religioso próprio, a palavra Advento veio a indicar antes de tudo a vinda gloriosa do Senhor no fim dos tempos, vinda que esperamos com fé, como Salvador. Em segundo lugar indica a vinda/revelação do Senhor na humildade da encarnação através da qual ele manifesta o amor do Pai, e esta por sua vez se torna fundamento inabalável da sua presença fiel e carinhosa na nossa vida de cada dia até o fim dos tempos, como Jesus prometeu aos discípulos. A liturgia da Palavra dos dois primeiros domingos do Advento destaca a promessa da vinda gloriosa do Senhor e a esperança ativa com que a Igreja espera essa vinda; enquanto o terceiro e o quarto domingo nos preparam para celebrar no Natal, com alegria e agradecimento, o evento central e fundador da nossa fé: “o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). “Que alegria, quando me disseram: vamos à casa do Senhor” (Salmo Resp.)!
A abertura para com as visitas e surpresas de Deus, o desejo apaixonado da sua amizade e intimidade, o sentido da necessidade que o Senhor entre na nossa vida e a dirija, são as atitudes fundamentais a serem cultivadas neste tempo de Advento. São as condições para acolher o Senhor que vem, celebrar dignamente a memória da sua encarnação, reconhecê-lo nas suas visitas misteriosas nos acontecimentos da vida e caminhar com renovada esperança ao encontro da sua vinda gloriosa.
Seremos guiados pelos profetas que anunciaram a vinda do Messias do Senhor e sustentaram a fé de Israel, e de maneira especial acompanhados pelo profeta Isaías, cujos textos são lidos com abundância nas liturgias eucarísticas e na Liturgia das Horas deste tempo. Solicitados pela palavra forte de João Batista, estaremos na doce companhia de Maria, que guarda com fé no seu coração toda Palavra de Deus e acontecimento (cf Lc 2,19). Chegaremos então, através de sua graça, a gerar também em nós o Verbo de Deus: “Isabel diz a Maria: Feliz és tu que acreditaste. Felizes sois também vós, que ouvistes e acreditastes, pois toda alma que possui a fé concebe e dá à luz a Palavra de Deus e conhece suas obras” (Santo Ambrósio).
É fácil constatar que estas atitudes interiores – e modalidades de ser e de atuar – que constituem o cerne da espiritualidade do Advento, formam verdadeiramente o âmago de toda espiritualidade cristã e a energia profunda do Espírito que anima a missão e o testemunho da Igreja e de cada cristão e cristã no mundo rumo ao cumprimento do reino de Deus. O Advento nos ajuda a redescobrir estas atitudes e a guardá-las. O Advento não é somente um tempo do ano litúrgico: é uma dimensão constitutiva da identidade cristã.
Dom Emanuele Bargellini
Prior do Mosteiro da Transfiguração
Mogi das Cruzes (São Paulo)