Por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração
Apresentamos o comentário à liturgia do próximo domingo – V da Quaresma Ez 37,12-14; Rm 8,8-11; Jo 11,1- 45 – redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes – São Paulo). Doutor em liturgia pelo ‘Pontificio Ateneo Santo Anselmo’ (Roma), Dom Emanuele, monge beneditino camaldolense, assina os comentários à liturgia dominical, às quintas-feiras, na edição em língua portuguesa da Agência ZENIT.
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DOMINGO V DE QUARESMA
Leituras: Ez 37, 12-14; Rm 8, 8-11; Jo 11, 1- 45
“Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que morra, viverá…. Crês nisto? Respondeu ela: “Sim, Senhor, creio firmemente que tu és o messias, o filho de Deus, o que há de vir ao mundo” (Jo 11,24).
A complexa narração da morte e ressurreição de Lázaro converge, tendo-o como seu cume, rumo a esta suprema revelação de Jesus e à sublime confissão de fé de Marta. É o ponto de chegada do longo caminho que desvela progressivamente o coração de Jesus sobre si mesmo e sobre a vida plena que ele vai doar no Espírito do Pai, aos que acreditam nele. Constitui também o ponto de chegada da fatigosa abertura dos que, aos poucos, se tornam “discípulos” de verdade, até proclamar a fé plena em Jesus, messias, filho de Deus e salvador de todos. É a meta da caminhada dos catecúmenos, através das fases preparatórias da iniciação cristã, assim como da redescoberta do próprio batismo e da renovada conversão ao Senhor por parte dos fiéis.
Na verdade, a primeira pessoa a sair do túmulo da dor, da profunda decepção, provocada pelo atraso e a falta de socorro no momento esperado, por parte do tão querido e potente amigo Jesus, é Marta. “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido. Mas mesmo assim, eu sei que o que pedires a Deus, ele te concederá” (11,21-22). Ela confia no poder que Jesus tem, dada a sua relação profunda com o Pai, e proclama a sua fé nele. Seguindo a solicitação de Jesus, ela passa da crença na ressurreição dos mortos no fim dos tempos à experiência pessoal da ressurreição interior, pela adesão total a Jesus. Ela se torna o modelo do caminho da fé do verdadeiro discípulo, e testemunha antecipada da páscoa, à qual o discípulo é chamado a partilhar com o Mestre.
Para todos os protagonistas aparece como incompreensível o aparente descuido de Jesus no que diz respeito ao pedido de socorro enviado pelas duas irmãs em nome do amor que vincula o próprio Jesus a Lázaro e a elas: “Senhor, aquele que amas está doente” (Jo 11,3). João parece destacar expressamente esta incongruência, ao sublinhar que Maria era “aquela que ungira com perfume e enxugara os pés dele com seus cabelos”, no gesto de puro amor que preanunciava a páscoa de Jesus (Jo 11,2; cf 12,1-11).
Desde o início da narração evangélica está emergindo que os tempos e as modalidades da atuação de Deus na vida, assim como nos acontecimentos, nas pessoas, nas famílias, nas comunidades eclesiais, na história, permanecem envoltos para nós no mistério; estão como que subtraídos aos nossos cálculos humanos.
Quando Jesus, desconcertando os presentes, declara abertamente que Lázaro está morto, eis aparecer a luz inesperada que desvela o sentido profundo do acontecimento: a doença do amigo ao fim não é destinada à morte, mas é uma oportunidade para manifestar a potência de Deus, glorificar o Filho e despertar a fé dos discípulos. “Essa doença não leva à morte; ela serve para a glória de Deus, para que o Filho seja glorificado por ela” (11,4). “Lázaro está morto. Mas por causa de vós, alegro-me por não ter estado lá, para que creiais” (11,15). Na cura do cego de nascença Jesus tinha destacado na mesma maneira que a doença dele não era devida ao pecado de alguém, mas pelo contrário, era uma oportunidade para se manifestar a potência de Deus que salva (Jo 10,3). Manifestar a glória de Deus e a identidade messiânica de Jesus, e despertar nas pessoas a fé em Jesus que salva, eis o sentido dos “sinais” que acompanham a missão de Jesus de Caná até à cruz. Ao discípulo cabe seguir o caminho dos sinais passo a passo, para entrar em profunda comunhão com Jesus.
Na atitude de Jesus para com Marta e Maria e na pedagogia que ele usa para com os discípulos e com o povo, somos convidados a reconhecer a constante pedagogia com a qual Deus acompanha nosso caminho pessoal e nos orienta para crescer na fé e na liberdade do amor. “Senhor, se tivesses estado aqui…..”. Quantas de nossas leituras apressadas dos acontecimentos se refletem nestas palavras de Marta e de Maria! (cf 11,32). E quantas de nossas queixas apaixonadas e doloridas elas interpretam! O “silêncio” de Deus frente às injustiças, aos mal-entendidos, aos perigos extremos, continuam fazendo parte do drama e das esperanças do homem e da mulher de todos os tempos. Razão de escândalo e de possível ressurreição, de rebelião e de passagem do nível humano ao da misteriosa sabedoria de Deus. O salmista se faz intérprete autorizado de todos nós: “Deus, não fiques calado, não fiques em silêncio e imóvel, ó Deus” (Sl 83,1).
“Lázaro está morto. Mas por causa de vós, alegro-me por não ter estado lá, para que creiais”! É preciso lembrar que a narração da morte e da ressurreição de Lázaro introduz diretamente na narração da paixão, morte e ressurreição de Jesus. Para ela converge, na sua estrutura literária assim como nas repetidas alusões veladas. O próprio Jesus vive o grande silêncio de Deus no horto das oliveiras e na cruz, e encontra resposta na misteriosa remoção da pedra do sepulcro.
No dia do Sábado Santo, o dia consagrado à meditação silenciosa do mistério de Jesus “descido à mansão dos mortos”, a Igreja nos fará acompanhar, com profunda emoção e fé, pelo silêncio no qual fica sepultado Jesus. Na solene vigília da noite, chegaremos a cantar com alegria a renovada fé de que em sua pessoa a vida venceu a morte: e junto com ele, também em nós a mesma vida vence nossa morte!
A austera pedagogia com a qual Jesus educa a fé dos discípulos e de Marta e Maria, assim como o poder divino de chamar o amigo Lázaro de volta da morte para a vida, exprimem-se através da mais intensa humanidade de Jesus. Ao ver chorar a amiga Maria, ele estremece interiormente, fica profundamente comovido e chora (11,33-34.38). Que estupor e que consolo suscita este Jesus! Ele é o Verbo de Deus que habita na luz inacessível do Pai, e ao mesmo tempo, torna-se tão próximo a todas as nossas paixões, sofrimentos e alegrias!
Ele fica procurando uma amizade com homens e mulheres simples, gosta do convívio e das boas comidas por estes oferecidas, sabe prevenir as necessidades dos que o seguem, e até mesmo antecipar os pedidos dos que nem conseguem expressar o que passa no próprio coração. Cura e chama, para que se tornem seus discípulos e íntimos, marginalizados como Mateus e Zaqueu. Deixa-se tocar e ungir com carinho nos pés por uma prostituta na casa do zeloso fariseu. Pessoas, mortas em si mesmas e na consideração dos demais, são por ele chamadas novamente a viver, com palavras e gestos de solidariedade e de amor. Ele deixa transformar sua compaixão e seu pranto, e o das amigas Marta e Maria, num grito de amor que chama os mortos para reviverem novamente. “Lázaro, vem para fora!” (Jo 11,43). Ele fica repetindo seu grito animador para cada um de nós. Nosso nome está no seu coração e vibra no seu chamado silencioso.
O túmulo escavado na rocha guarda bem atados dentro de si não somente o corpo de Lázaro, mas também as expectativas de todos, a começar por Marta. Ela é indicada como a “irmã do morto”, não somente pela consanguinidade na carne, mas por estar morta no seu interior: “Senhor, já cheira mal. Está morto há quatro dias” (11,39). Jesus volta a propor seu desafio/promessa: “Não te disse que, se creres, verás a glória de Deus?” (11,40). Antes de abrir o sepulcro de Lázaro, a fé abre o sepulcro do coração das pessoas, e Jesus, em comunhão com o Pai, abre caminhos para todos os que acreditam nele (11, 43).
Esta confiança na palavra de Jesus faz da ressurreição uma experiência que anima já o presente dos que acreditam em Jesus. Experiência que ressoa como canto cheio de esperança na voz da Igreja: “Nele brilhou para nós a esperança da feliz ressurreição… Senhor, para os que crêem em vós, a vida não é tirada, mas transformada” (Prefácio I dos defuntos).
“Desatai-o e deixai-o caminhar” (11, 44). Esta é a missão fundamental que Jesus entrega a seus amigos de todos os tempos. Partilhar com Jesus a missão de desamarrar as pessoas dos empecilhos que impedem viver e caminhar com as próprias pernas, na liberdade autêntica, como filhos e filhas de Deus. Libertar das correntes do pecado e das injustiças, mesmo quando estão escondidas sob o manto das observâncias religiosas, em pesadelos impostos pelos homens, ao invés de transmitir a energia libertadora da Palavra do Senhor. Jesus foi terrivelmente crítico com os falsos religiosos de todos os tempos (cf Mt 23,4), que põem fardos inúteis e pesados sobre os ombros das pessoas, enquanto pelo contrário seu jugo é leve (cf Mt 11,29-30).
Desde os primeiros dias da Quaresma, a Igreja nos alertou contra este risco – mais concreto do quanto gostaríamos admitir – através das palavras do profeta Isaías: “Acaso o jejum que prefiro não é outro: quebrar as cadeias injustas, desligar, romper as amarras do jugo, tornar livres os que estão detidos, enfim, romper todo tipo de sujeição?” (Is 58,6 – sexta-feira depois das Cinzas). Estamos contribuindo a desatar, ou a amarrar, a nós mesmos e aos nossos irmãos?
Todo empenho e toda contribuição oferecidos a pessoas necessitadas, para que elas voltem a caminhar com dignidade e liberdade na vida, é a realização da ordem apaixonada de Jesus para desatar Lázaro e deixá-lo caminhar. Quantas pessoas estão atuando a palavra de Jesus com generosidade, às vezes mesmo sem conhecê-lo!
Quem fica atuando assim vive segundo o Espírito do Senhor ressuscitado, o qual habita nele e o faz pertencer a Cristo de verdade, superando a lógica da afirmação de si mesmo; trata-se daquilo que o apóstolo chama de “carne” (2 Leitura, Rm 8,9). Todo o cap. 8 da carta aos Romanos é um canto à vida do Espírito que atua “naqueles que estão em Cristo” pela fé e o batismo (8,1).
O Espírito é o novo impulso vital que impele os discípulos de Jesus a viverem de fato como já partícipes da energia divina da sua ressurreição. Homens e mulheres que, embora atravessados ainda pelas dores do parto da nova criação, são animados pela esperança do seu cumprimento, e na totalidade da sua experiência humana aqui indicada com o termo “corpo”, guardam já o fermento da ressurreição futura e definitiva.
O profeta Ezequiel nos deixa vislumbrar a dimensão comunitária e histórica deste processo de ressurreição atuando no presente. Ele anuncia ao povo de Israel, sepultado como morto na experiência do exílio, que o Senhor vai tirá-lo desta trágica situação histórica, dando-lhe uma nova oportunidade inesperada de vida. A volta para a terra dos pais, a recuperação da liberdade política e a restauração do culto no templo reconstruído serão acompanhados por uma ressurreição ainda mais radical: a renovação interior promovida pelo seu Espírito. “Ó meu povo, vou abrir as vossas sepulturas e conduzir-vos para a terra de Israel… Porei em vós o meu espírito, para que vivais…. Então sabereis que eu, o Senhor, digo e faço” (1 leitura, Ez 37,12-14).
Esta experiência de renovação total, interior e histórica, constitui para o povo de Deus redimido, ontem e hoje, a maneira de “conhecer” de verdade o Senhor, o infinitamente transcendente e o extremamente próximo e solidário para conosco. Ele se faz encontrar e conhecer como doador da vida, não somente nas doutrinas elaboradas no nível intelectual, nem nas alturas excepcionais das experiências místicas reservadas a poucos, mas também nas ambiguidades e nas trevas das angústias cotidianas assim como nos complicados acontecimentos da história.
É esta fé e experiência que nos fazem cantar com o salmista: “Das profundezas eu clamo a vós, Senhor, escutai a minha voz! Vossos ouvidos estejam bem atentos ao clamor da minha prece…. No Senhor ponho a minha esperança, espero em sua palavra. A minh’alma espera no Senhor mais que o vigia pela aurora” (Salmo Responsorial – Sl 129,1-2: 5)
São Paulo, quinta-feira, 7 de abril de 2011 (ZENIT.org )