Por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração
Apresentamos o comentário à liturgia do próximo domingo – VI da Quaresma – 1Sm 1b.6-7.10-13a; Ef 5,8-14; Jo 9,1- 41 – redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes – São Paulo). Doutor em liturgia pelo ‘Pontificio Ateneo Santo Anselmo’ (Roma), Dom Emanuele, monge beneditino camaldolense, assina os comentários à liturgia dominical, às quintas-feiras, na edição em língua portuguesa da Agência ZENIT.
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DOMINGO IV DE QUARESMA
Leituras: 1Sm 1b.6-7.10-13a; Ef 5,8-14; Jo 9,1- 41
“Laetare, Jerusalém!” Com o nome derivado da primeira palavra latina da Antífona de Entrada, este 4º domingo da quaresma, é apelidado de “Domingo Laetare”, dia de alegria e de luz que antecipa a grande alegria da páscoa. É o próprio Senhor e seu amor fiel, amplamente demonstrado ao longo da história, a razão última da alegria e da esperança para Jerusalém, cidade que o Senhor escolheu e amou como sua esposa. Para ela e junto com ela, ele vai construir um novo futuro, quase uma nova criação – “Alegra-te, Jerusalém! Reuni-vos, vós todos que a amais; vós que estais tristes, exultai de alegria! Saciai-vos com a abundância de suas consolações! (Antífona de Entrada – Is 66,10-11).
Com o olhar penetrante da fé, a Igreja vislumbra na profecia de Isaías o evento salvador de Cristo e a própria sorte, junto com a da nova humanidade gerada na sua cruz e ressurreição.
“Eis a luz de Cristo! Demos graças a Deus!” Este é o grito de alegria, cantado por três vezes em tom crescente, com o qual a Igreja abre a grande Vigília da noite da Páscoa. É a alegre expressão da fé que o Senhor Ressuscitado está presente no meio da assembléia celebrante e que ela mesma está participando por graça à sua ressurreição. O grande Círio pascal, aceso no fogo novo, e em cuja flama vão se acendendo aos poucos as velas da assembléia orante a caminho, rumo ao recinto da Igreja, é símbolo do próprio Cristo morto e ressuscitado. Ele precede a comunidade dos que acreditam nele, e com sua obra e sua palavra, quebra o domínio das trevas e ilumina o caminho novo da humanidade.
O evento da páscoa de Jesus, com sua vitória sobre as trevas do pecado e da morte, constitui a origem e a meta do caminho do povo de Deus que fica peregrinando na história, iluminado por Cristo. A sua celebração sacramental na noite da Páscoa constitui por sua vez a origem e a meta do caminho quaresmal que cada ano se renova, para atingir, através do dinamismo do Espírito do ressuscitado, uma participação sempre mais profunda à vida de Cristo.
“Irmãos, outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Vivei como filhos da luz” (2 leitura – Ef 5,8). O apóstolo destaca que com o batismo não só gozamos da luz do Senhor para conduzir uma vida certa, mas que em força desta relação vital para com ele, “somos luz” no Senhor, participamos do seu ser, da sua vida. Desta participação nasce a possibilidade e o chamado a viver como “filhos da luz”, isso é a atuar e agir com seu mesmo estilo.
O batismo constitui a inserção dos fiéis no dinamismo vital da páscoa do Senhor. A Igreja, com sábia pedagogia, através da liturgia da palavra dos domingos da quaresma, nos introduz progressivamente no mistério pascal e no coração da iniciação cristã, quase antecipando em síntese o caminho da Vigília pascal.
O Lecionário, reestruturado pela reforma promovida pelo Concílio Vaticano II, nos entregou novamente, numa sucessão orgânica e eloqüente, as leituras bíblicas que desde os séculos antigos ilustravam na liturgia de Roma o caminho dos catecúmenos rumo à iniciação cristã. Ao longo do tempo ficara perdido o sentido da quaresma como caminho de iniciação, em favor da quaresma como caminho penitencial. As leituras bíblicas correspondentes ficaram dispersas em variadas celebrações das férias, sem a visão original de conjunto. O povo de Deus não teve mais contato orgânico com elas.
Sobretudo na quaresma – páscoa experimentamos a verdade profunda das afirmações do papa Bento XVI quando menciona a importância do atual Lecionário das Missas: “A reforma desejada pelo Concílio Vaticano II mostrou os seus frutos, tornando mais rico o acesso à Sagrada Escritura que é oferecida abundantemente sobretudo nas leituras do domingo. A estrutura atual, além de apresentar com freqüência os textos mais importantes da Escritura, favorece a compreensão da unidade do plano divino, através da correlação entre as leituras do Antigo e do Novo Testamento, centrada em Cristo e no seu mistério pascal” (Exortação Apostólica Verbum Domini (2010), n. 57).
Nas catequeses oferecidas aos catecúmenos nas homilias mistagógicas dos Padres da Igreja, ou através das imagens dos mosaicos que ornavam as paredes das igrejas antigas, a cena de Jesus que cura o cego de nascença ocupava um lugar central. Como em toda a narrativa do evangelista João, também na narração deste episódio, encontramos a dimensão do evento milagroso e o seu valor de “sinal” destinado a suscitar a fé dos protagonistas e a iluminar a fé dos leitores de cada tempo.
No relato encontramos dois processos interiores que vão num sentido contrário. O cego passa através de um caminho de iluminação interior que o conduz progressivamente a penetrar sempre mais profundamente o mistério de Jesus e sua relação com ele: reconhece em Jesus inicialmente o homem (Jo 9,11), depois o profeta (v.17), um homem que procede de Deus (v. 33), para desaguar ao fim na confissão da sua fé plena em Jesus Senhor (v. 38).
Ao contrário, as autoridades se envolvem numa progressiva cegueira. Não querem reconhecer a manifestação de Deus em Jesus. Prisioneiros dos próprios preconceitos, presumem “ver e julgar” a Jesus (v. 24), ameaçam e insultam o cego (v. 28) e ao fim, o expulsam da comunidade (v. 34-35). Na realidade eles mesmos constroem o próprio julgamento de condenação diante de Deus (v. 39-41).
A aceitação ou a recusa de Jesus se torna critério de julgamento autêntico da qualidade das obras de cada pessoa e da sua real escolha entre a luz e as trevas. O duplo dinamismo que encontramos na relação do cego e das autoridades judaicas com Jesus, se torna um critério permanente para avaliar a relação de cada um com Jesus. “O julgamento consiste nisso: a luz veio no mundo, e os homens preferiram as trevas à luz. É que suas ações eram más. Quem age mal detesta a luz e não se aproxima da luz, para que não delate suas ações. Quem procede lealmente aproxima-se da luz, para que se manifeste que procede movido por Deus” (Jo 3,19-21).
O batismo era indicado nas catequeses dos Padres da Igreja como “iluminação” e aqueles que eram batizados eram chamados de “iluminados”. Ainda hoje um pequeno, mas significativo rito complementar da celebração do batismo, põe em evidência sua dimensão iluminadora, que abre o caminho para seguir a Jesus e partilhar seus critérios de julgamento, que não olham as aparências enganadoras mas a verdade profunda das coisas e das pessoas.
É a entrega da vela batismal acesa no círio pascal e entregue ao batizado adulto ou aos pais e padrinhos da criança, com as palavras: “Recebei a luz de Cristo. Caminha sempre como filho da luz, para que perseverando na fé, possas ir ao encontro do Senhor com todos os santos no reino celeste” (Rito da Iniciação Cristã dos Adultos (RICA). N. 265).
A avaliação inicial do profeta Samuel sobre os filhos de Jessé, guiado pelo aspecto exterior, e a escolha final de Davi, o mais novo, depois da correção do profeta por parte do próprio Deus, é exemplo significativo da diferença que passa entre o julgamento dos homens e o de Deus (1ª leitura).
Como os prefácios dos outros domingos da quaresma, o de hoje proclama o louvor ao Pai, estruturando as razões específicas do seu canto a partir da mensagem fundamental do Evangelho e da sua relação intrínseca com o batismo. “Pelo mistério da encarnação, Jesus conduziu a luz da fé à humanidade que caminhava nas trevas. E elevou à dignidade de filhos e filhas os escravos do pecado, fazendo-os renascer das águas do batismo”. Este texto é um exemplo muito significativo de como toda nossa oração deveria deixar-se inspirar pela Palavra proclamada na liturgia ou meditada pessoalmente. A escuta amorosa do Pai tem que ter o primeiro lugar na oração cristã. A escuta na fé produz a palavra confiante dos filhos e das filhas. Nisto a liturgia é grande mestre de vida espiritual e de oração.
A luz/vida recebida no batismo é uma potencialidade divina a desenvolver, deixando-se guiar pela luz interior do Espírito, e procurando viver coerentemente segundo os impulsos interiores do mesmo, que conduz a um estilo de vida no qual se manifesta e resplandece a luz do mesmo Cristo. “Vivei como filhos da luz. E o fruto da luz chama-se bondade, justiça, verdade. Discerni o que agrada ao Senhor. Não vos associais às obras das trevas que não levam a nada; antes desmascarai-as…. Desperta, tu que dormes, levanta-te dentre os mortos e sobre ti Cristo resplandecerá” (Ef 5,8-11;14).
Na linha desta perspectiva da conformação progressiva a Cristo realizada pela sua luz transformadora, o apóstolo destaca como o caminho do discípulo, ao longo da vida, fica sendo um duro combate espiritual entre a luz de Cristo e as trevas do mundo que em nós habitam e nos circundam, e que tendem a nos ocupar novamente. É preciso fortalecer-se do poder de Deus e revestir-se da armadura do Espírito e de todos seus instrumentos (Ef 6,10-17).
Desde o início a sorte do Verbo, que é a vida e a luz, é a de brilhar nas trevas, de encontrar oposição, mas as trevas não conseguem apreendê-la. Pois ela é a verdadeira luz que ilumina todo homem ao vir ao mundo (cf. Jo 1,4-5; 9).
No contexto da solene festa judaica das cabanas, que celebrava a memória da grande aventura do êxodo, quando a nuvem e a coluna luminosa tinham guiado o caminho do povo de Deus no deserto, João faz proclamar a Jesus uma das suas auto-definições mais potentes, capaz de orientar e sustentar o caminho atribulado e as esperanças dos discípulos de todo tempo: “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não caminhará nas trevas, mas terá a luz da vida” (Jo 8,12).
Paradoxo da fé! Os místicos nos falam das terríveis experiências das trevas por eles experimentadas de maneira crescente e cada vez mais doloridas, na medida em que a graça do Senhor os introduz no conhecimento e na comunhão mais profunda para com ele.
A saída de Judas da sala da última ceia de Jesus com os discípulos, depois de ter tomado o bocado do pão molhado das mãos do próprio Jesus, marca o cume da prepotência das trevas: “Atrás do bocado entrou nele Satanás… Apenas tomou o bocado, saiu. Era noite” (Jo 13,27;30). Mas a entrega de Jesus em plena liberdade aos inimigos, junto com a afirmação da sua suprema liberdade de Filho, se torna origem da liberdade dos discípulos frente à violência das trevas ao longo da história.
Não parece um paradoxo a afirmação de Jesus que também os discípulos, na medida em que se deixam envolver na sua experiência de total dedicação ao Pai, se tornarão eles mesmos luz irradiante da luz de Cristo para o mundo: iluminados e iluminadores. “Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte…. Brilhe do mesmo modo a vossa luz diante dos homens, para que, vendo as vossas obras, eles glorifiquem vosso Pai que está no céus” (Mt 5,14 – 16).
A perspectiva final da história, vislumbrada pelo profeta, e permeada pelo fermento da páscoa, não seja talvez a de uma cidade ao fim radicalmente transfigurada pela luz transformadora do Cordeiro e iluminada pela glória de Deus? “Não vi nenhum templo nela, pois o seu templo é o Senhor, o Deus todo poderoso, e o Cordeiro. A cidade não precisa do sol ou da lua para a iluminar, pois a glória de Deus a ilumina, e sua lâmpada é o Cordeiro” (Ap 21,22-23).
“Oh noite feliz, só tu, soubeste a hora em que o Cristo da morte ressurgia; é por isso que de ti foi escrito: A noite será luz para o meu dia! (Exultet – Proclamação da Páscoa).