Por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração
SÃO PAULO, quinta-feira, 28 de julho de 2011 (ZENIT.org) – Apresentamos o comentário à Liturgia da Palavra do 18º domingo do Tempo Comum – Is 55,1-3; Rm 8,35-37.39; Mt 14,13-21 –, redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes – São Paulo). Doutor em liturgia pelo Pontificio Ateneo Santo Anselmo (Roma), Dom Emanuele, monge beneditino camaldolense, assina os comentários à liturgia dominical, às quintas-feiras, na edição em língua portuguesa da Agência ZENIT.
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18º DOMINGO DO TEMPO COMUM – A
Dai-lhes vós mesmos de comer
Leituras: Is 55,1-3; Rm 8,15-37.39; Mt 14,13-21
“Ao sair do barco, Jesus viu uma grande multidão. Encheu-se de compaixão por eles e curou os que estavam doentes” (Mt 14,14).
Eis que o reino de Deus, semente espalhada com generosidade em todo tipo de terreno, boa semente no meio do joio, pequeno grão de mostarda das potencialidades inesperadas, tesouro escondido no campo a ser procurado com discernimento vigilante e perseverança, vem à luz e se manifesta em toda sua energia vital em Jesus, que não mostra potência, mas se enche de compaixão ao ver o povo que o está procurando com tamanha insistência (Mt 14,14).
O povo que procura por Jesus e o segue, vagando como ovelhas sem pastor, faminto da sua palavra e da esperança por ele suscitada, impele Jesus a sair de um cuidado prudente para consigo mesmo e para com seus queridos discípulos.
Para si e para eles tinha procurado um lugar deserto e afastado, para se subtrair à pressão do poder prepotente – manifestado na morte violenta de João pelas mãos de Herodes – e por um pouco de descanso, depois da fatigosa missão dos doze (Mt 14,3; Mc 6,31-32).
Escolha razoável, “mas, ao ver…”. O que Jesus vê o impele a sair do próprio cuidado, para encontrar e assumir sobre si mesmo o outro, o povo sofrido. Ele escreve na sua pele o ensino que vai transmitir aos discípulos, como condição essencial para tornar-se seu discípulo: “Aquele que acha a sua vida, a perderá, mas quem perde a sua vida por causa de mim, a acha” (Mt 10,39). “Vinde a mim, todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo, e vos darei descanso” (Mt 11,28).
Mais uma vez, na atitude compassiva e solidária de Jesus se manifesta o coração do Pai, desde sempre atento em ver a miséria, em ouvir o grito dos sofridos, e a intervir para abrir novos caminhos em favor deles (cf. Ex 3,7-8). O Verbo de Deus, pelo qual tudo foi feito e no qual tudo tem consistência, continua a se fazer carne, a se esvaziar de poder, a assumir como própria a fraqueza de cada um, e a revelar assim a proximidade do Pai aos pequeninos (cf. Jo 1,14. 18).
Nele, o céu desce à terra e a terra encontra o céu, naquele admirável intercâmbio que faz Deus tornar-se homem e o homem participar da vida de Deus. O cuidado na cura dos doentes ilumina a missão de Jesus, colocando-o no caminho do “Servo do Senhor”, que leva sobre si nossos sofrimentos, carrega nossas dores e nos cura por suas feridas (cf. Is 53,4-5). O reino de Deus, escondido no campo e na pequenez do grão de mostarda, se torna experiência de renascimento à vida feita pelos pobres e famintos. Hoje, assim como ontem. A Palavra eficaz de Jesus manifesta sua energia vital para com todos aqueles que a procuram e se abrem a ele com fé.
A mesma estrutura narrativa do evangelista nos revela este dinamismo.
O acontecimento da alimentação milagrosa da multidão feita por Jesus marca uma passagem decisiva no processo da auto-revelação de Jesus como messias e da sua ação messiânica. A multiplicação dos pães é testemunhada por todos os evangelistas. Enquanto Lucas (9,10-17) e João (6,1-13) a narram como um episodio único, Mateus (Mt 14,13-21; 15,32-39) e Marcos (Mc 6,30-44; 8,1-10) a relatam duas vezes, caracterizando cada narração com acentos diferentes. Os estudiosos do NT observam que, através desta estrutura literária, os evangelistas destacam a atualidade da ação de Jesus e da Palavra de Deus, que se exprime e atua em contextos diferentes da vida do povo.
Enquanto a primeira narração de Mateus evidencia a missão e a ação de Jesus em prol do povo de Israel, em cumprimento das promessas de Deus aos patriarcas e aos profetas, a segunda sublinha sua extensão em favor dos pagãos. Jesus é o enviado do Pai para todos, e para todos os tempos e situações culturais, raciais, religiosas. Uma lição que a comunidade dos discípulos apreendeu aos poucos e com grande fatiga, e não sem contradições, como nos atestam as mesmas narrações evangélicas, os Atos dos Apóstolos e a história da Igreja ao longo dos séculos.
O contexto literário comum às duas narrações da multiplicação dos pães é constituído pelo deserto, pela procura do caminho de Deus, pela fome física e espiritual do povo. Elementos simbólicos de alta ressonância para ouvintes e leitores do evangelho, familiarizados com acontecimentos bem conhecidos do Antigo Testamento: a saída de Israel do Egito, com a dura experiência do deserto e a intervenção extraordinária de Deus, que alimenta seu povo com o maná (Ex 16; Nm 11); a multiplicação do azeite e do pão por parte do profeta Eliseu em prol da viúva (2Rs 4).
Jesus, com seu gesto de solidariedade, atua como o verdadeiro Moisés, o profeta de Deus. Realiza o plano de Deus e oferece o alimento escatológico, capaz não somente de saciar a fome do corpo, mas de doar a vida plena.
Ele mesmo tinha vivenciado a experiência do deserto no início da sua missão. Submetido às provações, não aceita o convite do diabo para recorrer aos milagres. Pelo contrário, reafirma, diferentemente do Israel do deserto, que o verdadeiro pão que sustenta no caminho da vida não é o que o homem pode providenciar para si mesmo, mas a palavra de Deus: “Não de só pão vive o homem mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4,4).
Este é o mesmo caminho que Jesus indica aos discípulos, como destaca a grande reflexão do próprio Jesus sobre o pão, na sinagoga de Cafarnaum, referida por João (Jo 6,22-71).
Os discípulos, porém, estão ainda longe das perspectivas do mestre. São homens muito razoáveis: pedem a Jesus que ele despeça o povo, pois as condições do lugar deserto e a hora do tempo sugerem que o melhor é que o povo seja mandado embora para que cada um providencie para si mesmo. “Jesus porém….” (Mt 14,16) tem outros critérios: o da solidariedade com o povo e o da confiança no Pai. Ele convida os discípulos a entrar no seu mesmo horizonte e a tornarem-se colaboradores ativos da sua escolha tão diferente: “Eles não precisam ir embora. Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16).
A resposta dos discípulos não pode que destacar a absoluta desproporção dos meios à disposição diante da enorme necessidade: “Só temos cinco pães e dois peixes” (14,17). Ele, porém, os transforma em colaboradores confiantes e ativos, pela fé que brota silenciosamente dos seus corações.
A escolha e o chamado inicial dos discípulos a segui-lo, assim como o chamado dos profetas a se tornarem voz e braço de Deus no meio do povo (cf. Is 6,1-10; Jer 1,4-10), não foram diferentes. Sempre acompanhados pela promessa: “Não temas, eu estou contigo”. Ontem, assim como hoje.
Na fragilidade do colaborador se manifesta a gratuidade e o poder da graça, nos lembra São Paulo ( 2Cor 4,7).
Jesus acolhe as necessidades do povo em toda sua complexidade. Cuida do corpo, assim como do espírito, da fome física, assim como da palavra de vida. E abre o caminho para o pão que dá a vida plena e abundante, sendo ele mesmo o pão doado do Pai, que sustenta o povo na caminhada ao longo da história, até sua vinda gloriosa.
A fé da Igreja, desde a mais antiga tradição, vislumbrou na multiplicação dos pães o pão escatológico por excelência, a eucaristia, da qual se alimenta no dia do Senhor.
Na luz desta fé, o evento milagroso da multiplicação dos pães é narrado com a sucessão dos gestos de Jesus que constituem a estrutura da celebração eucarística desde a primeira tradição conhecida: “Jesus tomou os pães… ergueu os olhos para o céu… pronunciou a bênção… partiu os pães e os deu aos discípulos… Os discípulos os distribuíram” (14,19). A eucaristia é indicada nesta maneira como o lugar onde o próprio Jesus forma e alimenta o povo peregrinante de Deus.
Do quase nada, em relação ao número das pessoas, brota a superabundância, como da semente de mostarda brota o grande arbusto onde os pássaros fazem o ninho. “Misericórdia e piedade é o Senhor, ele é amor, é paciência, é compaixão…. Vós abris a vossa mão prodigamente e saciais todo ser vivo com fartura” (Sl 144 – Responsorial).
Tal é a experiência que pode testemunhar todo aquele e aquela que se entrega com fé ao Senhor, até nas circunstâncias mais difíceis da vida. A entrega confiante e quase temerária ao seu amor se transforma em profunda alegria e inesperada paz. “Quem nos separará do amor de Cristo? Tribulação? Angústia? Perseguição? Fome?… Em tudo isso somos mais que vencedores, graças àquele que nos amou!” (Rm 8,35 – segunda leitura).
Hoje a comunidade cristã se encontra por sua vez na condição de enfrentar novos horizontes e desafios, nos quais a fome do homem e da mulher contemporânea assume novas formas e profundidades. Junto com a fome material, provocada pelos desequilíbrios sociais e econômicos, se eleva forte, embora confuso, o grito da fome espiritual e do sentido da vida por parte de tantas pessoas.
No seu recente discurso à FAO, papa Bento XVI destacou a dramaticidade desta situação e a exigência de uma profunda conversão pessoal e de mudanças das estruturas políticas e econômicas para deparar o drama, também através do empenho de pessoas honestas no âmbito profissional e político, come ele destacou em outras ocasiões: “A pobreza, o subdesenvolvimento, e portanto, a fome, são com freqüência os resultados de atitudes egoístas que, partindo do coração do homem, se manifestam no seu agir social, nas mudanças econômicas, nas condições do mercado, na falta de acesso ao alimento e traduzem-se na negação do direito primário de cada pessoa e nutrir-se e, portanto, e ser libertada da fome” [1].
Como fazer com que estas pessoas possam encontrar a compaixão de Jesus, e que o pão da vida seja distribuído também a elas?
Que não aconteça que, fechados nos pequenos mundos do passado, ligados a atitudes pastorais que tendem a repetir a si mesmas mais do que abrir-se aos novos pedidos, contentes de repetir nossa linguagem eclesiástica, herdeira de outro contexto cultural e espiritual, corramos o risco de oferecer pedras a quem nos pede pão, e cobras a quem nos procura peixes, como nos admoesta Jesus (cf Mt 7,9).
Mateus e Marcos, com a dupla narração da multiplicação dos pães, nos ensinam que é preciso saber atualizar a palavra, para que Jesus possa continuar a atuar na vida de cada um. O Concílio Vaticano II não propôs à Igreja inteira o critério da “fidelidade dinâmica e criativa” ao evangelho e à tradição doutrinal e espiritual, para ficar fiel ao Senhor e à missão em prol dos homens e das mulheres do nosso tempo, para os quais ela é enviada como a Esposa solícita do Verbo vivente do Pai?
É realmente a palavra do Senhor o que estamos oferecendo ao povo de Deus no nosso ensino e em nossas homilias, ou, às vezes a misturamos e substituímos com palavras piedosas de nossa invenção, do nosso grupo, da nossa ideologia, talvez prometendo até milagres?
Paulo com clareza denuncia que a falta de solidariedade para com os irmãos necessitados constitui uma contradição radical com a celebração da ceia do Senhor (cf 1Cor 10,20-22),
e “quem não reconhece” o corpo do Senhor, que é o eucarístico e também a comunidade, “come e bebe a própria condenação” (1Cor 10,29).
A tomada de consciência da seriedade e da beleza da participação à eucaristia se faz invocação humilde para que o Senhor sustente com o pão da vida o caminho coerente da comunidade: “Acompanhai, ó Deus, com proteção constante os que renovastes com o pão do céu e, como não cessais de alimentá-los, tornai-os dignos da salvação eterna” (Oração depois da comunhão)
Notas:
1. Discurso aos participantes à XVII Conferencia da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura – FAO em inglês – Roma , 1 de julho 2011.