Por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração
Apresentamos o comentário à Liturgia da Palavra do 29° domingo do Tempo Comum – Is 45, 1.4 – 6; 1 Ts 1, 1 – 5b; Mt 22, 15 – 21 –, redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes – São Paulo). Doutor em liturgia pelo Pontificio Ateneu Santo Anselmo (Roma), Dom Emanuele é monge beneditino camaldolense.
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29º Domingo Comum – A
Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus
Leituras: Is 45, 1.4 – 6; 1 Ts 1, 1 – 5b; Mt 22, 15 – 21
Em muitas nações está tornando-se muito vivo o debate sobre o sentido e o estilo da presença dos cristãos, e em particular dos católicos, na atividade política. Em alguns dos grandes países de antiga tradição cultural e religiosa própria como, por exemplo, na Índia e na China, os cristãos constituem uma porcentagem muito pequena. Por isso mesmo encontram dificuldade para exprimir uma presença significativa no nível social e político. A única palavra possível é o testemunho da própria vida inspirada pelo evangelho.
Em outras nações de antiga tradição cristã, como na Europa, hoje, porém, profundamente influenciadas pela mentalidade secularizada, os cristãos encontram forte oposição para uma presença mais incisiva nas mídias, nas estruturas econômicas, culturais e sociais, assim como no âmbito da política. A mentalidade secularizada pretende reduzir ao âmbito individual e particular toda expressão da dimensão religiosa da existência das pessoas.
Às vezes os cristãos chegam a sofrer uma verdadeira marginalização social por parte dos grandes poderes econômicos e culturais, isso quando não são conduzidos até a morte pela violência dos fundamentalistas religiosos, por causa do testemunho fiel ao evangelho e às exigências de justiça que o evangelho leva consigo. Todo mundo conhece as doloridas crônicas dos últimos anos, narrando acontecimentos dramáticos na Ásia, na África, mas também na América Latina e até no Brasil.
Em outros países, muitos católicos, depois de experiências bastante problemáticas e negativas, se afastaram do empenho político, e às vezes até social, achando ser mais condizente para eles dedicarem-se exclusivamente à “própria vida espiritual”, dentro das próprias comunidades, limitando a ação à caridade de emergência fornecida aos mais necessitados.
Talvez se encontrem outras pessoas e grupos, que sonhem voltar ao “tempo feliz” quando a Igreja, através das conexões diretas da sua hierarquia com as autoridades públicas, conseguia influenciar o comportamento social das pessoas, além das convicções interiores e da coerente prática pessoal. Era o tempo da chamada cristandade. Hoje a situação está radicalmente mudada, já que todas as sociedades apresentam-se profundamente pluralistas em nível social, cultural e religioso.
Como colocar-se neste novo contexto histórico, que é o nosso, para ser luz e sal do mundo, segundo o mandamento de Jesus (cf Mt 5,13)?
Homens e mulheres animados pela novidade que vem de Cristo, somos chamados a “partilhar as alegrias, as esperanças e as dores” dos homens e das mulheres do nosso tempo, como se exprime o Concílio Vaticano II, na Constituição “Gaudium et Spes”- “Alegrias e esperanças”.
A palavra de Deus deste domingo nos oferece algumas indicações para iluminar e orientar nosso caminho. Somos chamados a viver este nosso tempo com inteligência e discernimento espiritual, e colocando ao serviço dos nossos irmãos e irmãs “as energias que vem da nossa fé e as nossas capacidades humanas, procurando não os interesses particulares mas o bem comum”(papa Bento XVI – 10/10/11).
Diante das tentativas de afastar Deus da vida dos homens e das mulheres contemporâneas na pressuposição que ele diminua a sua liberdade e a responsabilidade, o papa Bento XVI, durante sua recente visita apostólica a sua terra natal, a Alemanha, afirmou com renovado vigor: “Onde Deus está presente, há esperança e abrem-se perspectivas novas e, frequentemente, inesperadas que vão para além do hoje e das coisas efêmeras”.
Jesus nos abre o caminho que passa através do processo de morte a nós mesmos e ao poder mundano, para libertar as energias criativas que nos habitam e que vem do Espírito de amor.
É preciso, porém, aproximar-se a Jesus com o coração simples das crianças, pois é a elas, e aos pequenos, que o Pai revela a profundidade do reino de Deus, e faz compreender a beleza de viver a páscoa transformadora com Jesus, e de pertencer ao Senhor na liberdade dos seus filhos e filhas (cf. Mt 11, 25-27).
Esta atitude interior de abertura ao Senhor e de desapego do poder, é um critério fundamental para nos afinar com o coração de Deus e atuar como discípulos de Jesus. Se ela faltar, até os milagres, se tornam incapazes de nos despertar às novidades de Deus, como aconteceu com os concidadãos de Jesus em Nazaré! (cf Mc 6, 5-6).
Ao contrário, os fariseus, fazem perguntas “para apanhar Jesus em alguma palavra” (Mt 22,15). Não estão à procura da verdade e da vida, mas espalham armadilhas para enganar. Projetam no diálogo com Jesus a maldade e a divisão que polui o seu coração. Escolhem por este objetivo o terreno mais equivocado, o da política. Como diz o salmista, os ímpios “falam de paz com seu próximo, mas tem a malícia no coração” (Sl 28,3).
No tempo de Jesus os romanos ocupavam com as tropas a terra de Israel e o povo era obrigado a pagar pesados tributos. O imperador de Roma, o César, era de fato o seu verdadeiro patrão. A tradição religiosa de Israel, ensinava, ao contrário, que o único dono do povo eleito devia ser considerado o Senhor, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, o Deus que tinha libertado seu povo da escravidão do Egito.
Este conflito de consciência despertava repetidas rebeliões sociais e militares entre o povo, que os romanos sufocavam com o sangue e, no final, com a destruição de Jerusalém no ano 70. Aceitar pagar a taxa do tributo significava reconhecer e aceitar a dominação dos romanos, estrangeiros e pagãos. Isto significava para Jesus perder o favor do povo.
Por outro lado, a recusa do pagamento provocaria a reação violenta dos ocupantes. Qualquer resposta, imaginam os adversários de Jesus, acabaria colocando-o numa situação desfavorável e perigosa.
Jesus desmascara a sua malícia. Indica a autêntica relação do homem e da mulher, assim como do poder publico, para com Deus e para com o homem, pois o poder existe para servir as pessoas. Jesus não aceita a contraposição entre Deus e o homem, mas destaca a primazia absoluta de Deus, como a nascente da liberdade do homem e da natureza do poder como serviço. “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.
Da primazia de Deus brota aquela unidade interior que gera a liberdade da consciência para a orientação da própria vida, e o respeito das obrigações em relação à legitima autoridade pública no nível social, quando suas disposições não violam a consciência das pessoas nem o bem comum.
A comum pertença à sociedade gera a obrigação moral e civil de contribuir com o bem comum, pagando impostos justos ao Estado, para que este os invista em serviços de pública utilidade. Assim, a autoridade pública tem o dever de não se aproveitar dos recursos públicos para fins particulares.
Ainda mais, da relação com Deus como referência fundamental da própria vida, nasce a exigência e a capacidade de empenhar-se com todas as suas energias ao serviço da sociedade e da promoção da justiça. “A ação política, conduzida com integridade e profissionalismo, dizia Paulo VI, constitui o mais alto exercício da caridade”.
Não instrumentalizar a religião para fins políticos, nem pretender fazer do poder político um instrumento impróprio, para dominar sobre os demais, nem para impor a própria visão religiosa, invés de respeitar e promover a liberdade e o crescimento integral das pessoas.
Quantos abusos e quantas distorções se podem observar no cenário público! Isto constitui um grande desafio para os cristãos do nosso tempo, conscientes da própria responsabilidade histórica em relação à sociedade.
Já através dos profetas o Senhor tinha afirmado o valor supremo da sua relação conosco, graças à aliança no amor: “Eu serei seu Deus e eles serão meu povo” – “Eu serei Deus para vocês e vocês serão povo para mim” (cf. Jer 31,33). lei da aliança deixa de ser uma obrigação exterior para tornar-se a inspiração que atinge o coração do homem sob o influxo do Espírito, e orienta sua existência em todas suas manifestações, individuais e públicas. O homem renovado pelo Espírito de Deus acaba com a divisão interior e com as ambiguidades nas suas relações com os demais. Tudo nele, quando vive sob esta influência benéfica e criadora do Espírito, é ao mesmo tempo resposta de amor a Deus e serviço de amor ao próximo.
Diante de uma nova pergunta maliciosa de um fariseu sobre qual fosse o maior dos mandamentos, Jesus indica na unidade indivisível do amor sem limites e sem reserva a Deus e ao próximo, o sentido supremo e único de toda a escritura: “Desses dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas” (Mt 22, 34-40).
A consciência que Deus guia a história de cada um, e de toda a humanidade com sua providência e sua fidelidade, sobretudo em favor dos mais necessitados, desperta a força interior e a esperança. Esta força interior gerou – e continua gerando – tantos mártires cristãos ontem e hoje. Esta é a mensagem fundamental que o profeta apresenta ao povo de Israel, no momento em que, depois de quase cinqüenta anos de exílio da própria terra, não tem a coragem nem de esperar mais um futuro diferente.
O profeta, ao contrário, iluminado pelo Espírito do Senhor consegue ler na ascensão militar e política do rei Ciro, no ano 535 a.C., a manifestação da providência com a qual Deus dirige a história em favor do seu povo, além da presunção de onipotência que o próprio Ciro talvez tenha de si mesmo. “Por causa de meu servo Jacó e de meu eleito Israel, chamei-te (Ciro) pelo nome; reservei-te e não me reconheceste. Eu sou o Senhor, não existe outro: fora de mim não há deus” (Is 45, 4-5).
Aqui está uma mensagem muito importante e atual para nós também. Às vezes temos a tendência a julgar os acontecimentos turbulentos e as profundas transformações sociais, políticas, econômicas, culturais e religiosas da nossa época, somente como elementos negativos. E ficamos sonhando voltar ao passado, imaginado-o como melhor. Falta-nos às vezes a consciência de ser “amados por Deus” e de ser “do número dos escolhidos”, como lembra o apóstolo Paulo aos Tessalonicenses (segunda leitura). Esta é condição indispensável para manter viva a atuação da nossa fé, o esforço da nossa caridade e a firmeza da nossa esperança em Cristo (1 Ts 1,3).
Falta-nos a capacidade de exercitar a leitura profética da situação, para descobrir a eventual função libertadora em nosso favor que ela guarda escondida em si mesma. Quais são as novas oportunidades para crescer em autenticidade, na nossa humanidade e na experiência da nossa fé, da nossa esperança e da nossa caridade? Qual é o “Ciro”, escolhido misteriosamente por Deus, para nos abrir um novo caminho de vida mais autêntica?
Seria um exercício muito proveitoso parar um pouco em silêncio e em oração diante de si mesmo e do Senhor; re-ler na luz do Espírito, a própria história, e tentar reconhecer quantas vezes à primeira vista certa situação nos parecia somente negativa e depois se revelou ser um “Ciro libertador”, uma oportunidade oferecida pelo Senhor, em função de um salto de qualidade de nossa própria vida. Tentemos ficar um pouco mais conosco mesmos e com o Senhor neste domingo.
Sem dúvida acabará saindo dos nossos lábios, se formos sinceros, o canto de louvor e de admiração do salmista: “Cantai ao Senhor Deus um canto novo… Manifestai a sua glória entre as nações e, entre os povos do universo, seus prodígios!… Adorai-o no esplendor da santidade, terra inteira, estremei diante dele” (Salmo Responsorial).
SÃO PAULO, quinta-feira, 13 de outubro de 2011 (ZENIT.org