Por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração
SÃO PAULO, quinta-feira, 1° de setembro de 2011 (ZENIT.org) – Apresentamos o comentário à Liturgia da Palavra do 23° domingo do Tempo Comum – Ez 33,7-9; Rm 13,8-10; Mt 18,15-20 –, redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes – São Paulo). Doutor em liturgia pelo Pontificio Ateneo Santo Anselmo (Roma), Dom Emanuele é monge beneditino camaldolense.
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23° DOMINGO DO TEMPO COMUM – A
Correção fraterna no Senhor
Leituras: Ez 33,7-9; Rm 13,8-10; Mt 18,15-20
“Se alguém está em Cristo, é nova criatura. Passaram-se as coisas antigas; eis que se faz realidade nova. Tudo isto vem de Deus que nos reconciliou consigo por meio de Cristo” (2Cor 5,17).
Talvez poucas outras afirmações de Paulo nos apresentem, em síntese tão clara, a novidade radical operada por Deus na pessoa que encontrou Cristo pela fé e pelo batismo. No centro da “nova criação”, inaugurada em Cristo, está o “homem novo”, criado no Espírito para uma vida nova de justiça e santidade. Este dinamismo novo marca desde já suas relações com Deus, com os irmãos e até com a própria criação, com a qual ele partilha o mesmo anseio à plena liberdade dos filhos e filhas de Deus.
Com a páscoa de Jesus, teve início uma comunidade tão rica em humanidade que, pela novidade divina que a anima, pode-se chamar comunidade do Senhor. Ela recuperou o projeto original de Deus sobre a família humana, enquanto antecipa, como profecia, a plenitude do reino de Deus na regeneração escatológica
Por enquanto, porém, ela caminha na história segundo a dinâmica divina da pequena semente, guardando em si mesma a energia de uma vitalidade que não se pode conter, revestida de fragilidade e exposta a toda sorte de adversidade: como o Verbo de Deus que escolheu ficar entre nós na fragilidade da carne.
O Apóstolo, com a mesma clareza, acrescenta: “Em nome de Cristo suplicamo-vos: reconciliai-vos com Deus… Eis agora o tempo favorável, por excelência. Eis agora o dia da salvação” (2Cor 5,20. 6,2). O dom de Deus se torna chamado a assumir uma colaboração responsável com a graça do Senhor, junto com a sua renovada oferta de perdão e reconciliação.
Fragilidade e graça, ofensa e reconciliação, pecado e perdão: ações humanas e dons recebidos de Deus, que partilhados entre irmãos e irmãs constituem a “veste cotidiana” do discípulo e da comunidade, enquanto eles se empenham em realizar a vocação de despojar-se do homem velho e revestir-se plenamente do homem novo em Cristo (cf Ef 4,24).
Como lidar com estas potencialidades de renovação pascal tão radical, e, por outro lado, com estas contradições, evidenciadas pela experiência cotidiana, além de toda tentativa de mascará-las? Mateus oferece à comunidade do seu tempo, assim como à nossa, um conjunto de exortações de Jesus sobre a vida da comunidade, que tem como ponto de referência os anúncios da sua paixão e ressurreição e o evento da sua transfiguração. Isso é, indica a própria pessoa de Jesus e seu mistério pascal. O batismo mergulhou o discípulo no dinamismo pascal de Jesus. Desta participação lhe derivam a energia e os critérios capazes de inspirar sua conduta.
Os critérios para uma correta relação com o Pai e com os irmãos, a construir cada dia em maneira sempre nova, são os do próprio Jesus: total dedicação ao Pai e aos irmãos no amor, e no perdão sem limite. Estes critérios, no evangelho de hoje assumem a forma da correção fraterna, atenta e generosa, e no trecho que será proclamado domingo próximo (Mt 20,21-35), se exprimirão no perdão recebido por Deus e partilhado entre os irmãos.
A comunidade se torna o lugar onde se pode experimentar e testemunhar a energia criadora da páscoa, comunidade frágil, mas animada e partícipe da mesma santidade de Deus. Com humildade e renovada confiança, em cada eucaristia, celebração memorial da páscoa, a Igreja com verdade reza: “E a nós, que somos povo santo e pecador, dai força para construirmos juntos o vosso reino que também é nosso” (Oração Eucarística V).
A pedagogia sugerida por Jesus para os irmãos sustentarem-se uns aos outros e corrigirem-se entre si, quando um venha a falhar contra o outro, é a mesma que ele usa com os pequenos, os marginalizados, os pecadores. Jesus vai à procura deles. Como o bom pastor que deixa nos montes as noventa e nove ovelhas para procurar aquela desgarrada (Mt 18,12-14): assim nos lembra a pequena parábola que precede imediatamente o texto do evangelho sobre a correção fraterna. Jesus não espera que sejam aqueles que se desviaram a fazer o primeiro passo, depois de terem-se “convertido”. Ao invés os atrai a si com sua iniciativa e os transforma.
No centro da pedagogia de Jesus não se encontra a legítima preocupação de restabelecer a justiça da lei violada, nem a necessária salvaguarda da mesma comunidade, que também merecem atenção (cf 1Cor 5,2-13; 2 Ts 3, 6). Quem escandaliza um dos pequeninos, amados pelo Pai, merece a mais dura condenação (cf Mt 18,6). Todavia no centro da atenção e da ação de Jesus está sempre a pessoa, o cuidado para ajudá-la a tomar consciência do seu desvio do caminho da vida, e a voltar para o caminho certo.
Os gestos a serem assumidos por parte da pessoa ofendida, ou pela própria comunidade no seu conjunto, são gestos despojados de toda aparência de poder e de vingança, cheios, pelo contrário, de ternura persistente e apaixonada pelo irmão que falha. Os passos indicados para a correção, feitos por graus, que vão desde o dialogo a sós com o irmão, ao encontro com ele estendido à participação de algumas testemunhas, e enfim à comunidade, não descrevem somente um correto procedimento jurídico.
Eles dizem respeito à progressiva aproximação a ser feita ao coração desnorteado do irmão, para carregar sobre si o peso dele, como o bom pastor põe sobre seus ombros a ovelha reencontrada e faz festa (cf Lc 15,8-10), a fim de fazer perceber ao irmão o amor do Pai, que não desiste nem diante das resistências do filho perdido (cf Lc 15,11-32). A correção fraterna, exercitada no estilo de Deus e de Jesus, é a maneira de atuar do próprio Deus na comunidade, e a maneira em que a comunidade vive e testemunha o reino de Deus entre os homens.
Por isso, quem, consciente dos próprios limites, pretende ajudar o irmão que está errando, deve procurar a ajuda da comunidade inteira. Diante da resistência a qualquer solicitação fraterna, a ele não resta que assumir a mesma atitude de Jesus, em relação aos pecadores: redobrar a dedicação e entregar o irmão ao amor de Deus, que só conhece os mistérios do coração do homem e pode renová-lo. É verdadeiramente extraordinária a perspectiva indicada por Jesus que coloca em oração a comunidade, como seu esforço extremo e mais eficaz para ajudar o irmão!
A estas condições, a sofrida tomada de distância do irmão (Mt 20,17) assume seu verdadeiro caráter de último remédio. Assume a forma do gesto da mão estendida, que procura a solidariedade de todos os irmãos, enquanto o entregam ao Pai. A oração da comunidade se torna divinamente eficaz, enquanto nasce da caridade. O que exprime caridade realiza plenamente o projeto de Deus, em sintonia entre céu e terra (Mt 18,18 -20). O estilo de Jesus é tremendamente desafiador!
Hoje em dia, diante das fraquezas cotidianas presentes nas comunidades cristãs, não falta quem faça apelo para uma mais rigorosa e estreita aplicação da disciplina canônica, como primeiro instrumento a ser usado para corrigir os que falham, dissuadir outras faltas, e como critério para marcar mais claramente quem pertence e que não pertence à Igreja. Razões para despertar, e até revoltar, a consciência comum e de cada um de nós diante dos enfraquecimentos da fé e da falta de coerência nos comportamentos com certeza não faltam. Seria suficiente pensar aos graves abusos contra as crianças, também por parte do clero, denunciados nos últimos anos.
O apelo, porém, à mais rígida aplicação da disciplina canônica para enfrentar os problemas existentes na comunidade cristã seria uma tentação e uma fuga da realidade, se a situação não nos interpelasse, antes de tudo, para uma renovada tomada de consciência da exigência de fundamentar melhor no evangelho e na experiência da iniciação cristã o caminho espiritual das pessoas e a praxe pastoral das comunidades.
A comunidade não é a soma de um certo número de habitantes da paróquia, a gerenciar como um todo, mas o conjunto de pessoas individuais, cada uma em busca do cuidado do Pai e da atenção à sua situação peculiar por parte dos pastores e de cada um de nós. O descuido recíproco entre as ovelhas é condenado pelo profeta com palavras fortes, assim como o descuido dos pastores em relação às ovelhas (Ez. 34,17-22).
Para enxergar razoavelmente no olho do irmão o cisco, é preciso antes cuidar que não se encontre uma trave no próprio! (Mt 7,3-5).
O apóstolo destaca que os critérios apropriados para construir relações certas dentro da comunidade, assim como na sociedade civil, são os indicados por Jesus ao mestre da Lei (cf. Mt 22, 34-40). “Não fiqueis devendo nada a ninguém, a não ser o amor mútuo, pois quem ama o próximo está cumprindo a lei… Os mandamentos… se resumem neste: ‘Amarás ao teu próximo, como a ti mesmo’. Portanto, o amor é cumprimento perfeito da lei” (2ª leitura – Rm 13,8. 10).
Os pastores receberam do Senhor a tarefa de vigiar em favor dos irmãos como sentinela, que vigia sobre a segurança da cidade e antecipa o alvorecer do novo dia, dando esperança aos que ficam sob o peso da noite. A missão do profeta, assim como de todos os chamados a colaborar com o Senhor, é antes de tudo ficar atentos à Palavra do próprio Senhor, para tornar-se seu fiel porta-voz “Logo que ouvires alguma palavra de minha boca, tu os deves advertir em meu nome” (Ez 33,7). A vida ou a morte do irmão podem depender da atenção ao Senhor e da coragem para transmitir sua palavra. Por isso a grave responsabilidade do profeta/pastor (1ª leitura – Ez 33,8-9).
É preciso sublinhar que a missão do pastor não é simplesmente guardar a boa ordem na comunidade, mas servir à palavra do Senhor. Por isso é a ele que será chamado a responder antes de tudo. Na comunidade dos discípulos, a autoridade é sempre reconduzida à sua verdadeira origem e finalidade: servir ao Senhor e aos irmãos, para que estes possam realizar sua verdadeira relação com o Senhor, na obediência da fé e na liberdade do amor.
São Bento, na Regra para os monges, atribui muita relevância à autoridade do abade, guia e animador da comunidade, que ele convida a reconhecer em espírito de fé como aquele que no Mosteiro desempenha o papel de Cristo (Regra dos monges, indicada com a sigla RB, c. 2, 1-2). Ao longo da Regra, enquanto evidencia sua responsabilidade e autoridade, sublinha constantemente o fato que de toda sua decisão, o abade, assim como qualquer outro irmão em autoridade, há de dar conta a Deus. Pela correção dos irmãos que erram, São Bento prescreve (RB, c. 23-25) exatamente os passos de cuidado fraternal e paterno, indicados por Jesus no evangelho de hoje.
Encontramos também um último toque, que bem evidencia o caráter evangélico da comunidade monástica e da autoridade. Se, depois de ter exercitado com diligência e amor, as artes do sábio médico e os cuidados do bom pastor (RB c. 27), o abade não conseguir algum resultado, “e ver que nada obtém com sua indústria, aplique então o que é maior: a sua oração e a de todos os irmãos por ele, para que o Senhor, que tudo pode, opere a salvação do irmão enfermo” (RB c. 28, 5).
Quando a atenção ao irmão se faz plena, a correção cuidadosa se torna antecipação ao doar-se um ao outro a honra do amor fraternal, e a obediência recíproca que precede até os desejos (RB 73).
A comunidade cristã: é uma comunidade não de perfeitos, mas de irmãos e irmãs que se ajudam reciprocamente a seguir o Senhor, com o mesmo coração do Pai e o mesmo estilo solidário de Jesus.
Domingo próximo, iremos contemplar que esta comunidade não é somente o lugar onde a solidariedade se faz cuidado e correção fraterna, mas também lugar do perdão, recebido de Deus e generosamente partilhado uns com os outros.