Por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração
Apresentamos o comentário à Liturgia da Palavra do 31° domingo do Tempo Comum – Ml 1,14b-2,1.8-10; 1 Ts 2,7b-9.13; Mt 23, 1-12 –, redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes – São Paulo). Doutor em liturgia pelo Pontificio Ateneu Santo Anselmo (Roma), Dom Emanuele é monge beneditino camaldolense.
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DOMINGO 31 – Comum – A
Autenticidade de vida e testemunho do Evangelho
Leituras: Ml 1,14b-2,1.8-10; 1 Ts 2,7b-9.13; Mt 23, 1-12
“Se eu, o Mestre e o Senhor, vos lavei os pés, também deveis lavar-vos os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, também vós o façais” (Jo 13,14-15). O próprio Jesus se torna sempre a realização encarnada da Palavra que nos entrega. Seu exemplo precede seu ensino, e deste constitui a força interior que lhe dá autoridade e eficácia.
Movido pelo impulso do Espírito e inspirado pelo exemplo de Jesus, Paulo afirma que seu ministério apostólico no meio da comunidade dos tessalonicenses foi exatamente a atuação do exemplo e do mandamento de Mestre: “foi com muita ternura que nos apresentamos a vós, como uma mãe que acalenta seus filhinhos. Tanto bem vos queríamos, que desejávamos dar-vos não somente o evangelho de Deus, mas até a própria vida” (1 Ts 2,7b-8). E acrescenta pouco depois “Bem sabeis que exortamos a cada um de vós, como um pai aos filhos” (1 Ts 2, 11).
Não é fácil encontrar hoje em homilias de padres e em cartas pastorais de bispos uma linguagem tão apaixonada e humana, capaz de expressar aquela autêntica experiência da paternidade e da maternidade espiritual na qual a Igreja, através do serviço e da dedicação generosa dos seus ministros, nos gera à vida de Deus na fé, e se torna nossa “mãe”. Quantas vezes estamos proclamando na linguagem eclesiástica corrente do dia-a-dia que a Igreja é nossa mãe!
Quanto da paixão e da ternura da mãe e do empenho generoso e sábio do pai – que o apóstolo reivindica como características do seu serviço ao evangelho para os tessalonicenses – moldam de verdade nossas atitudes pastorais, e alimentam nossa pregação e catequese, enquanto somos chamados a não somente “escutar”, mas “encontrar” a boa nova libertadora de Jesus, que transforma e dá vida?
As duras palavras de Jesus na polêmica contra os fariseus colocam em luz a contradição radical entre palavras e comportamentos, sobretudo nas pessoas que, na comunidade, têm a missão e a tarefa de abrir o caminho aos irmãos e irmãs para encontrar a Deus, o Pai fonte de toda paternidade (cf. Ef 3,15), que cuida, educa e acompanha com ternura de mãe seus filhos amados, até que se tornem adultos (cf. Os 11, 1-4).
Os fariseus e os mestres da lei proporcionam um ensino autorizado do qual é preciso ter conta, enquanto guarda em si a Palavra viva que vem de Deus e que transcende a postura pessoal deles. Seu estilo de vida deveria ser o espelho da mesma palavra e dar a ela credibilidade. Ao invés se torna um tropeço que atrapalha a vida do povo. Distinguir as situações ambíguas, com sabedoria e discernimento crítico no Espírito, como convém a pessoas maduras na fé, e pegar a distância das falsas aparências, para seguir o único verdadeiro Senhor, Pai e Mestre: eis a vocação e o desafio para os verdadeiros discípulos em todo tempo.
“Por isso deveis fazer e observar tudo o que eles dizem. Mas não imiteis suas ações! Pois eles falam e não praticam” (Mt 23, 3). Evidenciando uma série de contradições, Jesus destaca dois pecados fundamentais, que constituem o núcleo venenoso da alma, a hipocrisia, isto é, a manipulação da verdade para consigo mesmo, diante de Deus e na relação com os demais.
O primeiro pecado é a tentativa de esconder-se atrás de um aparente zelo religioso, identificado com a rígida observância da Lei, por eles aludida, mas carregada sobre os ombros do povo, observância desprovida de todo amor e autenticidade (Mt 23, 4). O segundo pecado é a procura em chamar a atenção do povo para si mesmo, colocando-se no lugar próprio de Deus, ao ostentar formas e palavras, capazes de capturar os simples, em vez de guiá-los ao Senhor da vida (Mt 23, 5-7).
Jesus se coloca na linha do profeta Malachias, que denuncia a perversão da própria missão por parte dos sacerdotes. Eles deveriam ser de ajuda e servir de guias para viver com fidelidade a aliança; ao contrário: se tornaram “pedra de tropeço” para os pobres (1ª Leitura, Ml 2, 8).
Os pequeninos são os privilegiados do Pai! Por isso a ameaça de Jesus se faz ainda maior daquela já severa que encontramos aqui. “Caso alguém escandalize um destes pequeninos que crêem em mim, melhor seria que lhe pendurassem ao pescoço uma pesada mó e fosse precipitado nas profundezas do mar!” (Mt 18,6).
O tropeço e o escândalo dos pequeninos não passam somente através dos comportamentos abertamente em contradição com o evangelho e o ensino da Igreja. Quando isso acontece, é mais fácil reconhecer o desvio e se defender. Hoje em dia atuam também duas formas, dentre outras, de possíveis desvios do caminho próprio do discípulo de Jesus.
Todo mundo é alertado contra certa mentalidade secular que descuida de Deus e da dimensão espiritual da existência humana, para seguir um relativismo individualista e limitado ao nível do bem estar material.
Outro perigo mais sutil é a exploração do sentimento religioso espontâneo e simples das pessoas, dobrando-o para formas pobres de conteúdo, fortemente ligadas às emoções, sem o cuidado paterno e materno de Paulo, para educar este mesmo sentimento religioso, e acompanhar os fieis a gozar das riquezas espirituais que a Igreja proporciona para todo o povo na Palavra de Deus, na Liturgia, na formação mais consciente e adulta da própria fé.
Ao pegar nas mãos certas publicações que se dizem de caráter piedoso, e ao olhar certos programas de TV (não somente evangélicos!), que pretenderiam alimentar a fé do povo de Deus, vêm naturalmente à mente as severas palavras de Jesus no evangelho de hoje! Muitas vezes são propostas na realidade formas quase mágicas de piedade, embora os altares apareçam bem arrumados, segundo as exigências das rubricas litúrgicas!
Para onde foi o luminoso empenho da Igreja assumido através do Concílio Vaticano II, orientado a reconduzir a fé e a piedade do povo de Deus às suas divinas raízes da Palavra de Deus e do mistério pascal de Cristo na liturgia, renovando as bases da catequese, para que se tornasse mais idônea a iluminar a mente e a esquentar o coração das pessoas com a caridade de Cristo?
Para onde foi o caminho de comunhão entre todos os membros do povo de Deus, peregrino na esperança rumo à vinda gloriosa do Senhor, que sustenta seu caminho, o ilumina, o faz solidário com todos os homens e mulheres do nosso tempo, e o abre à esperança?
Esta foi a grande estrela polar da eclesiologia promovida pelo Concílio Vaticano II, retomando a mais antiga e original tradição da Igreja.
A Igreja está se preparando a celebrar no ano 2013 os cinqüenta anos da abertura do Concílio ecumênico Vaticano II (1963- 2013). Este aniversário deveria constituir uma oportunidade para todos redescobrirem as grandes Constituições do Concílio (os principais documentos doutrinais e pastorais), e assumir com renovado empenho o caminho de renovação e de autenticidade da vida cristã que o Espírito Santo abriu para a Igreja.
Em qual terreno está caindo, dentro das nossas comunidades, a fecunda semente de vida lançada pelo papa Bento XVI, com a Exortação apostólica “Verbum Domini – A Palavra do Senhor” (2008), que, num gesto de profunda comunhão com os bispos da Igreja católica, assumiu as sugestões do Sínodo dos bispos, para colocar novamente no centro do coração da Igreja e da vida de todos os fieis a Palavra de Deus, que é o próprio Jesus, Palavra-Verbo do Pai?
Este é o caminho para, no nosso tempo, cultivar e promover uma fé e uma piedade autênticas, capazes de enfrentar os desafios da secularização e do falso “pietismo” de certas propostas religiosas, que podem nascer da boa vontade, mas que não conseguem fundamentar bastante as pessoas diante dos novos desafios.
O Encontro de Reflexão, Diálogo e Oração, promovido pelo papa em Assis no dia 27 de outubro, 25o aniversário do primeiro encontro organizado pelo Bem Aventurado papa João Paulo II (1986), tem como horizonte espiritual o lema “Peregrinos da verdade, peregrinos da paz”. O espírito com que o papa tem promovido este evento e o lema que o identifica destacam bem a exigência de crescer na autenticidade da relação com o mistério de Deus que nos habita e nos transcende, e na relação para com todos os membros da família humana, qualquer que seja a forma religiosa ou cultural, para expressar e honrar este mistério divino. Este encontro do dia 27 é preciso que de algum modo faça parte da celebração da eucaristia deste domingo, como palavra atualizadora do evangelho e da páscoa de Jesus.
Os estudiosos do Novo Testamento nos advertem que o tom altamente polêmico do trecho do evangelho de Mateus proclamado na liturgia deste domingo, se de um lado parece exagerar na leitura negativa do movimento dos fariseus, assim como se exprimia no tempo de Jesus, de outro lado, provavelmente, tende a marcar o perigo da hipocrisia e da modalidade errônea de se exercer a autoridade dentro da própria comunidade cristã no tempo do evangelista.
Tais riscos, seria esta a mensagem do evangelista, não se encontram somente no povo dos judeus, mas também na comunidade dos discípulos de Jesus, na nossa comunidade, em qualquer tempo e lugar.
Para os discípulos, Jesus indica outros critérios de relações recíprocas, e outro modelo para exercitar em maneira autêntica a autoridade: “Quanto a vós, nunca….” (Mt 23,8-12).
Diante da perspectiva da paixão, passagem escolhida pelo Pai para realizar a missão de Jesus como Messias e Salvador, os discípulos não conseguem entender o mistério de Jesus. E, sobretudo, não conseguem entender o que isto deveria significar para eles mesmos, enquanto seus “discípulos”. Continuam brigando entre si, sobre quem deveria ocupar os primeiros postos de poder entre eles.
Jesus revira as perspectivas: “Sabeis que os governadores das nações as dominam… Entre vós não deverá ser assim. Ao contrário, aquele que quiser tornar-se grande entre vós seja aquele que serve, e o que quiser ser primeiro dentre vós, seja o vosso servo. Desse modo o filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate por muitos” (Mt 20, 25-28).
Eis fundada a razão porque ninguém, entre os discípulos, pode pretender o “título” de mestre, de pai, de guia. Estas funções pertencem ao Pai e a seu Filho Jesus, que atua no Espírito Santo (Mt 23, 8-10).
Cristo, que se esvazia de todo poder e de aparência de glória, que lhe pertencem enquanto Verbo do Pai, e assume a fragilidade do escravo, morrendo na cruz, suprema manifestação do seu amor e da sua glória, permanece a fonte e o modelo de toda comunidade cristã, nas relações entre seus membros e no exercício da autoridade (cf Fl 2, 6-11).
Que sentido tem na Igreja as pessoas que exercitam os ministérios de ensinar, de suscitar a fé e de guiar e acompanhar o caminho de fé do povo de Deus?
Como diz a própria palavra “ministério”, elas são chamadas pelo Senhor a exercitarem um “serviço”, finalizado a promover a relação vital de cada um com o Pai, com o Mestre interior que é o Espírito, e com o Cristo, que é o verdadeiro caminho para o Pai. Nisto consiste toda a dignidade e a responsabilidade destes “ministros”. A partir da autenticidade desta delicada mediação, cada um precisa julgar seu próprio ministério na luz do Senhor, para verificar com humildade e sinceridade, se está de verdade servindo ao Senhor no seu povo, ou se por acaso não se está tornado pedra de tropeço para o mesmo.
Até a capacidade de servir o Senhor e o povo, como se convém, é graça. É a graça que a Igreja pede hoje, mais consciente do que nunca das próprias fragilidades: “Ó Deus de poder e misericórdia, que concedeis a vossos filhos e filhas a graça de vos servir como devem, fazei que corramos livremente ao encontro das vossas promessas”.
SÃO PAULO, quinta-feira, 27 de outubro de 2011 (ZENIT.org)