Por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração
Apresentamos o comentário à liturgia do próximo domingo – III do Advento (Ano A) Is 35, 1- 6a.10; Tg 5, 7 – 10; Mt 11, 2-11 – redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes – São Paulo). Doutor em liturgia pelo Pontificio Ateneo Santo Anselmo (Roma), Dom Emanuele, monge beneditino camaldolense, assina os comentários à liturgia dominical, sempre às quintas-feiras, na edição em língua portuguesa da Agência ZENIT.
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III Domingo do Advento – A
Leituras: Is 35, 1- 6a.10; Tg 5, 7 – 10; Mt 11, 2-11
“Gaudete” (Alegrai-vos) é o nome que a antiga liturgia romana dá ao terceiro domingo do Advento, derivando-o da primeira palavra da Antífona da Entrada. Este domingo nos introduz numa nova etapa do caminho do Advento e numa nova dimensão da espiritualidade deste tempo litúrgico e da vida cristã: a alegria e a paz. Ambas, quando autênticas, são dons messiânicos específicos que acompanham a salvação de Deus e que brotam do Espírito do Senhor e da conformação de si mesmos a Ele, graças a uma relação de intimidade progressiva com ele mesmo.
Gostaria de tomar esta antífona da entrada como ponto de referência para iluminar a mensagem da liturgia da Palavra deste domingo no seu conjunto.
A cor rosa dos paramentos litúrgicos, vestidos pelos ministros segundo uma antiga tradição, contribuem para destacar o caráter festivo da celebração.
“Gaudete – Alegrai-vos sempre no Senhor… O Senhor está perto!”, canta a santa mãe Igreja com as palavras apaixonadas do apóstolo Paulo aos filipenses (Fl 4,4-5). São palavras dirigidas a uma comunidade cujos membros experimentam a incapacidade de se relacionar uns com os outros e com os acontecimentos da vida através do autêntico espírito dos discípulos de Jesus. São palavras repetidas hoje com ousadia e confiança para nós, que conhecemos as mesmas dificuldades e estamos sob o pesadelo dos muitos desafios que provêm da vida complicada de todos os dias.
Para sair desta estrada sem rumo, Paulo indica aos filipenses o exemplo desafiador do próprio Cristo: estando na forma de Deus, Ele despojou a si mesmo tomando a condição de escravo, abaixou-se, tornando-se obediente até a morte sobre uma cruz, e por isso Deus o exaltou e o fez fonte e critério de vida nova para aqueles que o seguem (cf Fl 2,6-11). A proximidade do Senhor indicada por Paulo como razão de alegria e esperança é, antes de tudo, a abertura à sua amizade, a disponibilidade a partilhar seu estilo de vida e sua sorte. É abertura ao futuro e à vida segundo o projeto de Deus para nós. É espera ativa da sua vinda gloriosa, a qual faz assumir na vida cotidiana os sentimentos de confiança em Deus e de entrega ao seu amor e ao dos irmãos, sentimentos estes que caracterizaram Jesus até o dom de si mesmo.
Quando a pessoa e a comunidade se abrem ao Senhor, completamente e com total confiança, e permitem que ele se torne o único guia da existência, tudo se transfigura: encontra-se a verdadeira paz e alegria. Numa certa maneira se antecipa a sua vinda gloriosa. Eis a surpresa e o paradoxo da experiência cristã! Eis o paradoxo do novo povo de Deus chamado e capacitado pelo Espírito a viver segundo o estatuto da nova aliança proclamado nas bem-aventuranças, vivenciado pelo próprio Jesus e entregue aos discípulos como fermento de nova humanidade (cf Mt 5,1-12). Paz e alegria são dom de Deus e tarefa a ser cumprida pelos discípulos e discípulas de todo tempo.
A alegria do discípulo não é algo de superficial e emocional, algo de individual e “intimístico”. Algo que nasce da autorrealização ou da ausência de dificuldades. Pelo contrário, é força do Espírito que alimenta a esperança e se traduz em testemunho e empenho em prol da comunidade. Faz o cristão enxugar as lágrimas do irmão que chora e transforma seu coração e seus braços nos do bom samaritano atento aos feridos e abandonados às margens das estradas da vida (cf Lc 10,29-37).
Entram em jogo as melhores energias da pessoa: “Ocupai-vos – acrescenta o apóstolo – com tudo o que é verdadeiro, respeitável, justo, puro, amável, honroso, tudo o que é virtude ou de qualquer modo mereça louvor” (Fl 4,7).
A espera é dimensão que atravessa toda nossa existência pessoal, familiar, social, cultural. política. Mas surge uma pergunta radical: O que cada um de nós deve esperar de verdade como horizonte do seu caminho, para fundamentar sua luta de cada dia, suas expectativas, para não desanimar e perseverar frente aos atrasos e mesmo diante dos insucessos? A relação de intimidade na fé com o próprio Jesus é a fonte daquela alegria e paz de origem divina, que “ultrapassa todo entendimento humano” (Fl 4,7), e acompanha surpreendentemente os discípulos no caminho pessoal e ao longo da história. “Não fiqueis perturbados. Crede em Deus e crede em mim” (Jo 14,1). “Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz; não vo-la dou como a dá o mundo. Não vos perturbeis nem vos acovardeis” (Jo 14,26). Partindo deste horizonte divino se assiste ao paradoxo evangélico da alegria de sofrer por e com Jesus. Desde os primeiros discípulos diante do tribunal de Jerusalém (At 5,41-42), até os intrépidos cristãos e cristãs, que ainda hoje em dia enfrentam com coragem e perseverança a perseguição e a morte por amor de Jesus.
A sociedade secularizada, sem perspectivas espirituais e transcendentais, tenta responder ao inextinguível desejo de felicidade do coração humano oferecendo paraísos artificiais de breve duração: é o bem estar baseado na procura e no consumo incessante de bens materiais; é o poder e o dinheiro; é a corrida pelo sucesso social; é o culto pela própria imagem; são as drogas, etc. Mesmo um certo ativismo pastoral pode tornar-se busca inconsciente de um arremedo da alegria evangélica. Ninguém está imune contra os possíveis desvios do ânimo humano.
O Advento nos indica o caminho certo para construir sobre a rocha a casa da felicidade e, ao mesmo tempo, a encontrar uma resposta para os desafios das armadilhas e dos sofrimentos que acompanham nossa peregrinação na fé. O Advento constitui uma verdadeira proposta alternativa de cultura e de civilização, fundada sobre a energia transformadora do Espírito que abre e dilata os corações à procura e à promoção do que é autenticamente humano, na medida em que se deixa construir sobre a relação profunda com Senhor.
A carta de Tiago destaca como o dinamismo da espera e da esperança faz os cristãos ficarem firmes e criativos diante das vicissitudes da existência. Exemplos inspiradores desta atitude são o agricultor e os profetas. O agricultor tem a coragem de entregar a semente à terra e esperar com ânimo forte, com alegria antecipada, o tempo da colheita; embora exposta aos imprevistos das estacões. Os profetas do antigo testamento, por sua vez, experimentaram a profunda tensão determinada pela espera do cumprimento das promessas de Deus. Eles conseguiram somente vislumbrar de longe o que anunciavam e confiaram na fidelidade de Deus.
Os cristãos são os sucessores dos profetas nesta vocação de reconhecer e testemunhar a novidade de Deus e a esperança, ainda escondidas nas frágeis contradições do presente. A dimensão profética inscrita no batismo felizmente voltou a ser colocada em destaque pelo Concílio Vaticano II, como parte integrante da identidade e da vocação de todo cristão e cristã. Recuperar esta consciência e esta atitude profética por parte dos cristãos hoje em dia se faz particularmente urgente, devido ao vazio espiritual e à falta de perspectivas capazes de darem sentido à existência e que afligem tantos homens e mulheres. Tarefa exaltante e desafiadora ao mesmo tempo. “O fato de sermos cristãos exige que tenhamos fé e esperança, mas a paciência é necessária para que elas possam dar seus frutos” (São Cipriano).
“És tu, aquele que há de vir, ou devemos esperar um outro?”(Mt 11,3). João Batista é o exemplo de como deixar-se renovar na espera e na confiança em Deus. Ele é aquele que fez ressoar no deserto sua voz potente, convidando o povo à conversão para acolher o Messias de Deus. Ele é aquele que por fidelidade à sua missão desafia o potente Herodes arriscando a vida. Diante do “estilo inusitado” com que Jesus atua e prega a Boa Nova do Reino de Deus, fazendo-se próximo sobretudo aos pecadores e marginalizados de todo tipo e proclamando a misericórdia de Deus, João fica perplexo, pois Jesus parece caminhar num estilo messiânico bem diferente daquele que ele havia destacado (Mt 3,10-12). “És tu, aquele que há de vir, ou devemos esperar um outro?”.
Jesus responde simplesmente mostrando que a potência transformadora do Reino está já operando, segundo a promessa de Deus (Is 35,5-10). É preciso somente se adequar ao estilo de Deus em Jesus: “Feliz aquele que não se escandaliza por causa de mim” (Mt 11,6). João vive dedicado totalmente à própria missão ao serviço de Jesus, apontando-o a seus discípulos como o Cordeiro de Deus destinado a tirar o pecado do mundo (Jo 21,29) e afirmando com lealdade de amigo: “É preciso que ele cresça e eu diminua” (Jo 3,30). Por isso Jesus o exalta como “mais do que profeta” e como o maior entre os homens (Mt 11,9-11). Mas surpreendentemente acrescenta que todo aquele que consegue entrar na lógica nova que Deus manifesta em Jesus “é maior do que João Batista”, pois vive afinado com o próprio Deus.
Somos convidados a escutar com toda atenção o convite de João à conversão, mas também a segui-lo no caminho da sua própria conversão ao estilo de Deus e à esperança que o acompanha. É o caminho indicado por Jesus. Se seguirmos, todo deserto voltará a florescer e mesmo as histórias mais complicadas se abrirão a um novo futuro: “Alegre-se a terra que era deserta e intransitável, exulte a solidão e floresça como um lírio… Criai ânimo, não tenhais medo!” (Is 35,1;4).
ZENIT, 09/12/2010