Um dos argumentos que, por vezes, se lança a título de dúvida sobre a legitimidade constitucional do Acordo Brasil-Santa Sé é o de que o tratado não se conformaria com o art. 19, I, da Constituição.
Basta que se atente para o sentido do preceito, auxiliado pela história dessa norma e pelo seu significado na sistemática da Lei Maior, para que se afaste semelhante ordem de perplexidade.
O art. 19, com o inciso I, da Constituição da República, dispõe:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
A leitura, mesmo que superficial, do Acordo deixa nítido que, por esse documento de direito internacional, não se cria, nem se pretende criar, uma nova agremiação religiosa, muito menos se deseja embaraçar, nem se logra prejudicar, o funcionamento de qualquer denominação religiosa. Basta ver que nenhum dos dispositivos do Acordo impõe restrição alguma a outras religiões (ao contrário, no que tange ao ensino religioso, o tratado cria a obrigação de o Estado proteger as demais religiões, assegurando a todas o mesmo direito de acesso aos seus fiéis em fase escolar).
O Acordo internacional não fixa nenhuma relação de dependência entre as partes. O Estado brasileiro não se torna submisso à estrutura eclesiástica católica, nem perde a sua autonomia para a gestão da coisa pública. A Igreja tampouco passa a ser gerenciada por agentes estatais. O Acordo, antes, somente existe porque a Santa Sé e o Estado brasileiro se reconhecem com sujeitos soberanos de Direito. O Acordo é, ao invés de um documento de sujeição, um ato de afirmação da irredutibilidade de uma dessas pessoas jurídicas de direito internacional à outra, pressupondo essa mesma inconfundível identidade de cada uma.
O Acordo não tem por objeto fortalecer, quer o Estado brasileiro, quer a religão católica, perante algum incogitável inimigo comum. Não há nenhuma pertinência em supor que, por meio desse Acordo, se esteja firmando uma aliança entre o Estado e a Santa Sé vedada constitucionalmente. O Acordo, conforme já o perceberam tantos, apenas homenageia a liberdade religiosa no país, cuidando de cercar esse direito básico dos limites e das garantias recomendados pelo momento que se vive.
Nada do que o art. 19 pretende prevenir está presente no Acordo Brasil-Santa Sé; a compreensão dessa realidade se beneficia do entendimento do próprio texto do art. 19, I, nas suas razões históricas.
A cláusula do art. 19, I, da Constituição de 1988, é comum nas constituições republicanas. Desde 1891, as constituições passaram a repetir, com certas variações circunstancias, a vedação expressa a que o Estado crie, subvencione ou embarace culto ou igreja. Essa norma tantas vezes reiterada tem a sua inteligência indissociável da sua razão de ser, que não se dá ao conhecimento sem que se contemple a sua gênese na tradição republicana.
Ao tempo da Constituição do 1824, o catolicismo era a religião oficial do Estado, que tinha obrigação de mantê-lo e era detentor de prerrogativas na administração das suas atividades, interferindo até no desempenho das suas liturgias. Permitia-se às demais religiões o “culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo” (art. 5º).
Com o fim do Império, deu-se por superado o sistema de ingerências recíprocas nas economias internas do Estado e da religião oficial, marca do regime do padroado. João Barbalho nos recorda que “o Governo Provisório, por decreto n. 119 A de 7 de janeiro de 1890, antecipara à Constituição a decretação da plena liberdade de cultos e vedara aos poderes públicos estabelecer, regulamentar e custear qualquer religião” (Constituição Federal Brasileira (1891), edição fac-similar. Brasília: Senado Federal, 2002, p.41).
A Constituição de 1891 também estatutiu que “nenhum culto ou igreja terá relação de dependência ou aliança com o governo da União ou dos Estados” (art. 72, § 7º). Visava-se esclarecer que todos os cultos seriam respeitados, “com as únicas restrições fundadas na moral e ordem pública, e não consentindo que qualquer deles invada os direitos individuais ou os do Estado” (João Barbalho, ob. cit., p. 314). O publicista da Primeira República salienta que se pretendia afastar a imposição de uma religião pelo Estado ao cidadão, no suposto de que “recalcitra a consciência quando sente a mão do Estado”, e diante do que, então, se revelou de incômodo na dependência recíproca do Estado e da religião, um embaraço à “comoda e auspiciosa coexistência das duas instituições” (id., ibidem).
O governo republicano pretendia superar o tipo de relação do Estado com a religião oficial, que impossibilitava a convivência desta com outras denominações religiosas na vida pública. Lê-se a proibição de o Estado “estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos” (art. 11, 2º, da Constituição de 1891) como resposta ao momento anterior, que se pretendia vencer.
Como é característico das refutações jurídicas a situações de fato muito próximas no tempo, foram cometidos excessos. A Constituição de 1891, por exemplo, não somente proclamou que o ensino público haveria de ser leigo (art. 72, § 6º), como chegou ao extremo de proibir que os religiosos, sujeitos a voto de obediência perante a respectiva congregação, se alistassem como eleitores (art. 70, § 1º, 4º). Tampouco a Constituição previa forma de colaboração recíproca entre o Estado e as igrejas. O Decreto nº 510 de 22 de junho de 1890 estabeleceu estar “excluída do país a companhia de jesuítas e proibida a fundação de novos conventos ou ordens monásticas”, regra expressamente reiterada no Decreto nº 914 A de 23 de outubro de 1890.
As constituições seguintes não cederam a tantos desses desvios do estritamente necessário para se atingir a finalidade da não-interferência do Estado sobre a liberdade de consciência do cidadão.
As proibições a ordens religiosas e as restrições políticas aos seus integrantes desapareceram. Na Constituição subsequente, de 1934, repetiu-se a vedação a que as pessoas de direito público interno viessem a “estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos, ter relação de aliança ou dependência com qualquer culto ou igreja” (art. 17). Acrescentou-se que não estava proibida a “colaboração recíproca em prol do interesse coletivo”. A mesma ressalva não foi reproduzida na Constituição da ditadura do Estado Novo, que se limitou a vedar à União, Estados e Municípios, “estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos” (art. 32).
Em 1946, tornou-se a aludir à colaboração do Estado com igrejas. O art. 31 da Constituição então elaborada proibiu os poderes políticos de “estabelecer ou subvencionar cultos religiosos ou embaraçar-lhes o exercício, ter relação de aliança ou dependência com qualquer culto ou igreja, sem prejuízo da colaboração recíproca em prol do interesse coletivo”. A norma foi inserida, ante a ponderação de constituintes no sentido de que “não é possível voltarmos ao Estado leigo, agnóstico de outras eras. O fenômeno religioso não pode ser esquecido. (…) A finalidade do Estado não é só jurídica, como os homens de 91 entendiam” (José Duarte. A Constituição Brasileira de 1946. Rio, 1947, 1º vol., p. 566).
A Constituição de 1967 segue essa linha (art. 9º) e a Emenda Constitucional n. 1/69 aduz que a colaboração há de ser feita nas formas e nos limites de lei federal.
Como se nota, o preceito do art. 19, I, da Constituição em vigor, apenas dá curso a uma tradição normativa republicana, valendo-se, inclusive, de termos que se repetem nos diplomas constitucionais anteriores. Essa tradição, retificados os excessos dos seus momentos iniciais, não se inclina pela impossibilidade de o Estado manter ligação com igrejas; diferentemente, tem por meta obviar a interferência do Estado sobre a economia interna das religiões e impedir medidas que impeçam a livre existência de denominações religiosas – tudo em favor da efetiva liberdade religiosa do cidadão.
É interessante notar que nem mesmo nos ardores positivistas da proclamação da República foi imaginado um sistema em que o Estado se alijasse, como que em repugnância, da religião. Ao contrário, a tradição republicana aponta para a inclinação por uma confluência de atuações, no que o bem comum recomenda e o exercício da religião necessita, mantida a independência funcional e estrutural básica do Estado com relação às igrejas.
O certo é que nada do que decorre da linha republicana de relacionamento do Estado com a religião pode ser visto como impedimento a que o Estado brasileiro celebre ato de direito internacional com a Santa Sé – sobretudo quando se sabe que esta é reconhecida pela generalidade dos países como sujeito de direito internacional.
Nada no art. 19, I, da Constituição atual, é estorvo para que o tratado Brasil-Santa Sé, como redigido e assinado, seja aprovado e implementado. O que esse art. 19, I, repele é que o Estado institua ou funde uma igreja ou que interfira sobre decisões próprias do culto de qualquer religião. Nos seus Comentários à Constituição de 1988, Cretella Júnior esclarece o que está proibido por esse dispositivo, ao dizer que “o Estado não pode imiscuir-se na prática da fé religiosa, criando cultos, embaraçando-os, ou subvencionando-os”, sem prejuízo da “colaboração por interesse público” (São Paulo: Saraiva, 1991, vol 3, p. 1178).
Esse é o sentido da laicidade do Estado que se pode descobrir do art. 19 e da linhagem histórica que o explica. A Constituição não quer o Estado inimigo da religião. A religião, como se nota dos dispositivos da declaração de direitos fundamentais, é um bem que o Estado se compromete a tutelar. O art. 19 expressa, sim, dois modos de proteção da liberdade de religião – aquele da não-imposição aos indivíduos de uma religião por parte dos poderes públicos e aquele outro da garantia do tratamento não-discriminatório das religiões existentes.
Celebrar um tratado com a Santa Sé não é formar a aliança que o constituinte recrimina. O tratado não importa em o Estado brasileiro assumir financeira ou administrativamente o culto da religião católica – em nenhum ponto, o Acordo permite uma semelhante leitura. O tratado tampouco prejudica, de nenhuma forma, o funcionamento das demais religiões. Na realidade, ao contrário, o Acordo abre para as demais denominações religiosas o caminho da formação bilateral de normas ajustadas às necessidades peculiares de cada qual, em benefício da plena fruição dos direitos decorrentes da proclamação da liberdade religiosa pela Constituição da República.
Ante o disposto no art. 19, I, da Constituição em vigor; ante o que se proclama nos incisos VI, VII e VIII do art. 5º, da mesma Carta, em termos de direitos negativos (de abstenção) e também positivos (de prestação); ante a preocupação que move o constituinte a cogitar da objeção de consciência no art. 143, § 1º; ante o alto valor que o constituinte reconhece à religião, a ponto de garantir o ensino religioso em estabelecimentos públicos (art. 210, § 1º) e de reconhecer, no art. 226, § 2º, efeitos civis ao casamento religioso (ato de culto) e até a dispor sobre o regime tributário singular das igrejas (art. 150, Vi, b); ante a inequívoca parceria constitucional que o constituinte entendeu de firmar com as religiões em prol do bem comum desejado pela ordem que instituiu, chegando mesmo a se servir das igrejas para difundir o seu ideal de promoção humana plena, como se vê do art. 64 do ADCT; ante essas evidências de que a Constituição não é avessa à religião, nem lhe é indiferente, não se pode afirmar que o princípio da laicidade do Estado, como acolhido pelo constituinte, seja empeço para o Acordo Brasil-Santa Sé.
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Fonte: Site CNBB, 21.08.2009