Sobre a delicada questão do celibato sacerdotal, para Kasper, não existem pontos a esclarecer e não existe qualquer mudança na disciplina da Igreja:” é evidente que somente os bispos e sacerdotes já ordenados podem permanecer casados e que isso, por norma, não valerá para os futuros seminaristas”. É assim que foi explicado aos ortodoxos:” Em Chipre, para evitar mal-entendidos, eu disse logo aos nossos parceiros ortodoxos que não se trata de proselitismo ou de um novo uniatismo. Sobre este argumento, certa ocasião, falei também com o arcebispo de Canterbury e ele concordou que não deva existir uniatismo anglicano. Além disso, o uniatismo é um fenômeno histórico que diz respeito às Igreja Orientais, e os anglicanos são de tradição latina. Permanece válido o documento de Balamand, de 1993, segundo o qual, trata-se de um fenômeno do passado, ocorrido em circunstâncias que não se repetem. Não é um método para o presente e para o futuro”. Os ortodoxos “estavam interessados sobretudo – diz o cardeal – em compreender a natureza do ordinariato pessoal para os anglicanos, e precisei que não se trata de uma Igreja sui júris (de direito próprio), e não existirá , pois, o chefe de uma Igreja, mas um ordinário com atribuições de vigário”. Para Kasper, então, não existirão “repercussões negativas” à publicação da Constituição Apostólica, nem mesmo da parte protestante”. Entre todos os cristãos, é uma conquista que o Papa deseja continuar os diálogos ecumênicos assim como foram concebidos pelo Concilio Vaticano II”.
Conversa com o cardeal Kasper sobre a Constituição Apostólica “Anglicorum coetibus”
Giampaolo Mattei
O arcebispo de Caterbury, Rowan Williams, primaz da Comumhão Anglicana, estará em Roma de 19 a 22 de novembro, para intervir no diálogo com o cardeal Johannes Willebrands, por ocasião do centenário do seu nascimento, programado para quinta-feira, dia 19, quando falará exatamente sobre o desenvolvimento idiscutivelmente positivo dos relacionamentos entre anglicanos e católicos, depois do Concílio”. Será uma ocasião também para analisar a nova constituição apostólica “Anglicanorum coetibus”.
O cardeal Walter Kasper, presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos anuncia, assim, numa entrevista ao jornal vaticano “L’Osservatore Romano”, que com o primaz serão examinados diretamente os desenvolvimentos da nova estrutura pessoal pensada pelo Papa para os anglicanos. “A sua próxima visita ao Vaticano demonstra que ruptura alguma aconteceu, e relança o desejo comum de dialogar num momento histórico importante. Com este espírito, o arcebispo de Canterbury se encontrará com membros da Cúria Romana e, no dia 21 de novembro, falará com o Papa.
Temos a ocasião de abrir uma nova fase do diálogo ecumênico, que continua a ser uma prioridade da Igreja Católica e do pontificado de Bento XVI. São dias intensos de frente ecumênica”. O purpurado conta que recebeu, em plena noite, um telefonema do Arcebispo Williams enquanto estava em Chipre para os trabalhos da comissão mista com os ortodoxos. “Falamos do significado da nova Constituição Apostólica, e assegurei-lhe sobre a continuação dos nossos diálogos diretos, como os indicou o Concílio Vaticano II e como deseja o Papa”.
“Respondeu-me que, para ele, esta confirmação é uma mensagem muito importante”. Segundo Kasper, sobre a Constituição apostólica “o arcebispo de Canterbury manteve uma posição equilibrada desde quando foi informado. Os nossos contatos pessoais são cordiais e transparentes. É um homem de espiritualidade, um teólogo. Na realidade, hoje, os únicos obstáculos ao diálogo ecumênico podem vir das tensões internas ao mundo anglicano.”
A Constituição Apostólica “se compreende de fato a partir do Concílio e dos diálogos diretos que suscitou“, evidencia o cardeal. Sobre a possibilidade de uma reaproximação, já naquele tempo, haviam grandes esperanças, também porque nos contatos diretos se descobre que temos uma tradição comum de quinze séculos”. As expectativas, porém estavam um pouco frustradas, sobretudo recentemente, por causa de alguns desenvolvimentos internos à Comunhão anglicana. Continuaram acontecendo as ordenações de mulheres ao presbiterato e depois ao episcopado, a consagração de um bispo homossexual, a bênção de casais do mesmo sexo: opções que provocaram graves tensões internas ao próprio mundo anglicano. Por força das coisas, alargou-se o fosso com os católicos. No entanto, a resposta crítica a estes desenvolvimentos não veio somente dos anglicanos amigos dos católicos. Enfim, nem todos aqueles que não estão de acordo com aquelas novidades desejam tornar-se católicos, também porque entre os anglicanos a maioria é de inspiração evangélica”.
Kasper explica sem rodeios de palavras a gênese e o significado da nova Constituição Apostólica a partir da experiência direta do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos. “Estamos conscientes dos fatos. Um grupo de anglicanos pediu livre e legitimamente para entrar na Igreja Católica. Não se trata de uma iniciativa nossa. Dirigiram-se primeiro ao nosso Conselho e, como presidente, respondi que a competência é da Congregação da Doutrina da Fé”. O purpurado tentou varrer o campo de equívocos “porque – sublinha – nestes dias li muitas interpretações jornalísticas inverossímeis”: o Conselho “sempre foi informado pela Congregação da Doutrina da Fé e não é verdadeiro que esteja sendo posto de lado.Não participamos diretamente das conversações, mas fomos informados de tudo, como é certo. O texto da Constituição foi preparado pela congregação da doutrina da Fé. Nós vimos a primeira redação e apresentamos as nossas propostas”.
“Que perspectivas abre a Constituição? Não podemos, de forma alguma, opor-nos – diz o cardeal – se um anglicano ou um grupo de anglicanos deseja entrar em plena e visível comunhão com a Igreja Católica. O Papa abriu a porta com benevolência. Indicou um caminho. Ofereceu uma possibilidade concreta que, absolutamente, não contraria o ecumenismo. Já o decreto Unitatis Redintegratio do Vaticano II assinala claramente que uma coisa é o ecumenismo, outra coisa é a conversão. Mas não existe contradição. Além disso, a idéia de reunião corporativa, prevista na nova constituição, está presente, desde o início, no diálogo em os anglicanos”. Pois, segundo Kasper, “exatamente os pacientes confrontos ecumênicos mostraram que já existe uma ponte que une, e uma proximidade tal que se pode realizar um passo dessa importância”. E acrescenta com clareza:”Pensar, como qualquer comentarista, que o Papa, com esta decisão, pretende alargar o seu império, é ridículo!”
O difícil vem agora. Para o cardeal “é fisiológico que não sejam pequenos os problemas a serem resolvidos numa questão tão delicada. Um pouco de confusão aconteceu, sobretudo entre os jornalistas. Não é fácil colocar de acordo todas as partes em causa, ouvir os argumentos de cada um. Agora, assumimos as coisas como estão e vamos adiante juntos”. O que acontecerá agora? Kasper está atento sobre o risco de “falar de forma abstrata” e sugere atenção aos desdobramentos: “Como primeira coisa, devemos saber concretamente quem e quantos são os anglicanos decididos a aproveitar esta oportunidade. Depois veremos tempos e lugares”.
Do purpurado vem, então, um “apelo ao realismo”. Deve-se “ver, caso por caso, quem são estas pessoas. Não se faz católicos só porque há desacordo com as opções da própria confissão religiosa.Também não é suficiente assinar o Catecismo da Igreja Católica, ainda que seja uma decisão significativa. Por isso, tenho que insistir:”deve-se ver caso por caso, e não generalizar”. A partir da própria experiência com os anglicanos, o cardeal faz perceber que existem “alguns problemas difíceis de dissolver, problemas que ainda não foram enfrentados, cuja solução parece complicada. Permanecendo com os pés no chão, dizemos logo que não será uma decisão fácil para os bispos e pastores anglicanos, também do ponto de vista da dimensão social”. Entre as questões práticas a serem afrontadas, Kasper indica “a preocupação de alguns bispos de dividir as suas dioceses: uma parte que entra na Igreja Católica e uma outra que permanece anglicana. Como administrar uma separação desse gênero? E depois, a igreja, entendida como edifício, a quem pertence? Quem estabelece se um edifício é de propriedade do Estado ou do Município ou da Comumidade? se é católico ou anglicano?”.
Algumas perplexidades, o cardeal alimenta sobre o diálogo com a Comunhão Anglicana Tradicional: “Os seus representantes, há dois anos, pediram para serem incorporados à Igreja Católica. Mas não participaram mais das conversações. Agora, no entanto, embarcaram num vôo, num bonde andando. Lógico, se forem sinceros, as portas estão abertas. Mas não fechamos os olhos ao fato de que, desde 1992, não estão em comunhão com Canterbury”. Palavras claras, mas não de fechamento:”Precisa respeitar a consciência e a liberdade de consciência”. A conversão, pois, é um fato pessoal:”existe a liberdade da graça, a liberdade da decisão humana. Não se pode invadir este campo; não se pode obrigar”.
(Extraído do jornal vaticano L’Osservatore Romano, edição italiana de 15/11/2009 – tradução: Pe. Raul Kestring)