Diante de tudo o que estamos vivendo nesses dias – e não sabemos até quando –, lembrei-me de um testemunho do Apóstolo Paulo que, creio, ilumina-nos bastante. Suas palavras vêm a calhar por se tratar de um momento de dificuldade pelo qual ele estava passando – igualmente, nós – e diante do qual não perdeu a confiança no Senhor, mantendo-se sereno e tranquilo. Depois de falar, no versículo dez, da alegria que sentiu porque os filipenses se interessaram outra vez pelos seus ensinamentos, diz Paulo: “Não digo isso por estar passando necessidade, pois aprendi a me manter com o que tenho. Sei disciplinar-me na
penúria e na abundância. Estou acostumado com toda e qualquer situação…” (Fl 4,11-12).
De qual necessidade está falando? Daquelas de um prisioneiro. Paulo escreve aos santos em Cristo que estão em Filipos, provavelmente, da prisão. Ali, aprendeu a viver com o que tem, e podemos supor, devia ser muito pouco, um mínimo para sobreviver. Seu segredo é a disciplina adquirida ao longo de suas viagens, nas quais experimentou as mais diversas realidades e, como bom atleta de Cristo, combateu os bons combates da fé, fortalecendo-se nas provações. Paulo fez bem as lições de casa recebidas na escola do discipulado.
Por isso, não perde a compostura e a confiança diante da adversidade, pois está convicto: “Tudo posso naquele que me fortalece” (v. 13). Enquanto humanidade, enquanto comunidade global, enquanto população planetária talvez a dimensão que a pandemia tomou seja inédita. Já quanto a problemas pessoais, grande maioria de nós, por vezes, enfrentamos situações bem mais difíceis, doloridas e trágicas. Diante do Covid-19 ou sob o peso da cruz particular – esta, às vezes, perdurando por sei lá quantos anos – como aprendemos a reagir, que disciplina desenvolvemos, qual confiança a nossa fé alcança?
A pergunta para a qual busco resposta é a seguinte: em nosso tempo, o que realmente permite a vida acontecer? A vida por si mesma, como um valor a priori, ou as prisões das quais nos tornamos tão dependentes, sendo a primeira de suas celas a do dinheiro? Foi mesmo esse mundo maluco que Deus sonhou para seus filhos? – indago-me, com medo da resposta que vai se desenhando aqui dentro. É momento, sim, para repensarmos o nosso ritmo, as nossas falsas seguranças e ilusórias garantias, os ideais pelos quais gastamos toda uma vida.
Agora todos, crentes e descrentes, fiéis e infiéis, acorrem a Deus, implorando salvação, mas sem tomar consciência da responsabilidade que cada um temos diante de tudo isso. “Somos todos culpados de tudo e eu mais que todos” – diz
Dostoievski. Quão bonito o testemunho do Apóstolo dos gentios, mas quão difícil seguir seu exemplo. Não há alternativa, é preciso aprender a lidar com a situação e aprender as lições que tal situação nos deixa. “A arte de viver é, simplesmente, a arte de conviver. Simplesmente? – disse eu. Mas como é difícil” – descobre Mario Quintana.
Talvez Paulo discordaria do poeta gaúcho, justamente por ter aprendido, a duras penas, óbvio, a arte de conviver. E conviver com tudo. Nós, por nossa vez, continuamos nas não simples dificuldades do dia-a-dia e nas buscas por suas soluções. E, se não aprendermos a tal arte, nunca chegaremos a estatura de Paulo – que é livre, mesmo dentro da prisão. Não é a pandemia que me interessa, não sei se ficou claro. O que ocupa minha reflexão é a vida humana e suas oportunidades de reflexão que, facilmente, passam despercebidas.
Temo que, após o Coronavírus, alguns poucos tenham apenas aprendido a desenvolver uma vacina e outros alguns tenham, nada mais que, encontrado um jeito de equilibrar a Bolsa a fim de que as ações não despenquem. Ambas as coisas são necessárias, mas, pensando para além, é muito pouco. E, tendo passado a tempestade, todos voltaremos para nossas
celas, esperando o momento de clamarmos outra vez por deus, sei lá eu qual. Sou cristão, sou padre, estou rezando também, mas penso que não é apenas de oração para a solução dos problemas por meio da intervenção divina o que precisamos nesse momento. Isso é reduzir Deus a uma espécie de vigilante sanitário com super-poderes.
Ouso dizer que Deus já fez sua parte, dando-nos inteligência para descobrirmos os remédios, ainda que não saibamos quanto tempo isso levará. Estamos, não podemos esquecer, diante das consequências da liberdade que o mesmo Deus deu a cada um de nós, cujas escolhas que fazemos acarretam consequências – micro ou macrocósmicas. O pior, desconfio, é se Deus estiver dizendo algo e não soubermos ouvir. Que outras coisas podem ser curadas em nós, a partir do Coronavírus? Que outras mais carece aprendermos com tudo isso? “Aprendi a me manter com o que tenho”. E não se trata apenas de coisas materiais, de víveres, dos supérfluos, de uma manutenção físico-biológica. A alma também requer sustento, também vive, o interior igualmente precisa de mantimentos.
É hora de aprender a viver com o pouco – pouca liberdade, pouca gente, pouca renda, pouco contato, pouca certeza, pouca coisa a fazer –, mas, nesse pouco, encontrar o essencial, o necessário, o indispensável, o insubstituível, o que dá sentido e que, no fim, é o muito que precisamos. É hora de aprender que o trabalho pode esperar, que dinheiro não compra tudo, não resolve tudo e não é comida. É hora de aprender a esperar, simplesmente esperar, como foi até que nascêssemos. É hora de aprender que os mais velhos existem. É hora de aprender que a casa é um lugar para se estar. É hora de aprender que em algumas situações, não podemos fingir que não está acontecendo nada, e que devemos obedecer, apenas obedecer. É hora de aprender que, fazendo minha parte, a vida alheia estará mais segura, ainda que me custe um pouco – aprendendo, assim, que a vida tem um custo.
Passado o Coronavírus, quiçá possamos dizer: “Estou acostumado com toda e qualquer situação”. Do contrário, terá sido apenas uma triste pandemia.
Pe. Fernando Steffens
19/03/2020.