Intervenção na audiência geral de 05 de outubro
Apresentamos, a seguir, a catequese que o Papa Bento XVI dirigiu hoje aos fiéis reunidos para a audiência geral.
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Queridos irmãos e irmãs:
Dirigir-se ao Senhor na oração implica em um ato de confiança, com a consciência de entregar-se a um Deus que é bom, “misericordioso, lento à ira, rico em amor e fidelidade” (Ex 34,6-7; Sal 86,15; cf. Jl 2,13; Gn 4,2; Sal 103,8; 145,8; Ne 9,17). Por isso, hoje eu gostaria de refletir com vocês sobre um salmo impregnado de confiança em sua totalidade, no qual o salmista expressa sua serena certeza de que é guiado e protegido, posto a salvo de todo perigo, porque o Senhor é o seu pastor. Trata-se do Salmo 23 (segundo a tradição greco-latina, número 22), um texto familiar para todos e amado por todos. “O Senhor é o meu pastor, nada me falta”: assim começa esta bela oração, evocando o ambiente nômade do pastoreio e a experiência de conhecimento recíproco que se estabelece entre o pastor e as ovelhas que compõem o seu pequeno rebanho. A imagem recria uma atmosfera de confiança, intimidade, ternura: o pastor conhece as suas ovelhas, uma a uma, chama-as pelo seu nome e elas o seguem porque o reconhecem e se fiam dele (cf. Jn 10,2-4). Ele cuida delas, protege-as como bens preciosos, está preparado para defendê-las, para garantir seu bem-estar, para fazê-las viver em tranquilidade. Nada pode faltar-lhes se o pastor está com elas. A esta experiência se refere o salmista, chamando Deus de seu pastor e deixando-se guiar por Ele rumo a campos seguros:
“Ele me faz descansar em verdes prados,
a águas tranquilas me conduz.
Restaura minhas forças,
guia-me pelo caminho certo,
por amor do seu nome.” (vv. 2-3)
A visão que se abre aos nossos olhos é o dos prados verdes e fontes de água límpida, oásis de paz rumo aos quais o pastor acompanha seu rebanho, símbolos de lugares de vida aos quais o Senhor conduz o salmista, que se sente como as ovelhas recostadas no campo, ao lado de um manancial, em situação de repouso, não em tensão ou em estado de alarme, mas confiadas e tranquilas, porque o lugar é seguro, a água é fresca e o pastor vela por elas. Não nos esqueçamos de que a cena evocada pelo salmo está ambientada em uma terra em grande parte desértica, tostada pelo sol abrasador, onde o pastor semi-nômade do Oriente Médio mora com o seu rebanho nas estepes áridas que se estendem ao redor dos povoados. Mas o pastor sabe onde encontrar capim e água, essenciais para a vida, sabe guiar em direção ao oásis, onde a alma se “refresca” e é possível recuperar as forças e extrair novas energias para retomar o caminho.
Como diz o salmista, Deus o guia a “verdes prados” e “águas tranquilas”, onde tudo é abundante, onde tudo se dá copiosamente. Se o Senhor é o pastor, inclusive no deserto, lugar de carestia e de morte, não diminui a certeza de uma radical presença de vida, até o ponto de se poder dizer: “Nada me falta”. O pastor, de fato, tem no coração o bem do seu rebanho, adapta seus próprios ritmos e suas próprias exigências às das suas ovelhas, caminha e mora com elas, guiando-as por caminhos “certos”, isto é, adaptados a elas, com atenção às suas necessidades e não às próprias. A segurança do seu rebanho é a sua prioridade e a isso obedece a sua orientação.
Queridos irmãos e irmãs, também nós, como o salmista, se caminharmos seguindo o “Bom Pastor”, ainda que possam parecer difíceis, tortuosos ou longos os caminhos da vida, inclusive muitas vezes em regiões desérticas espiritualmente, sem água e com um sol de racionalismo abrasador, sob a orientação do Senhor deveremos estar seguros de que estes são os “certos” para nós e de que o Senhor nos guia, está sempre perto de nós e de que não nos faltará nada. Por isso, o salmista pode declarar uma tranquilidade e uma segurança sem dúvidas nem preocupações:
“Se eu tiver de andar por vale escuro,
não temerei mal nenhum,
pois comigo estás.
O teu bastão e teu cajado me dão segurança.” (v. 4)
Quem caminha com o Senhor nos vales escuros do sofrimento, das dúvidas e de todos os problemas humanos, sente-se seguro. “Tu estás comigo”: esta é a nossa certeza, a que nos sustenta. A escuridão da noite dá medo, com suas sombras mutáveis, a dificuldade de distinguir os perigos, seu silêncio cheio de barulhos indecifráveis. Se o rebanho se mover depois do pôs do sol, quando a visibilidade não é boa, é normal que as ovelhas se inquietem, pois existe o risco de cair, afastar-se ou perder-se, e também há o temor de possíveis agressores que se escondem na escuridão. Para falar do vale “escuro”, o salmista usa uma expressão hebraica que evoca as trevas da morte; portanto, o vale que precisamos atravessar é um lugar de angústia, de ameaças terríveis, de perigos de morte. No entanto, o orante caminha seguro, sem medo, porque sabe que o Senhor está com ele. Esse “comigo estás” é uma declaração de confiança inquebrantável, que resume uma experiência de fé radical; a proximidade de Deus transforma a realidade, o vale escuro perde toda a sua periculosidade, esvazia-se toda ameaça. O rebanho pode caminhar tranquilo, acompanhado pelo som familiar do cajado que bate no chão e indica a presença tranquilizadora do pastor.
Esta imagem confortante fecha a primeira parte do salmo e dá lugar a uma cena diferente. Estamos ainda no deserto, onde o pastor vive com o seu rebanho, mas agora estamos sob a sua barraca, que se abre para acolher:
“Diante de mim preparas uma mesa
aos olhos de meus inimigos;
unges com óleo minha cabeça,
meu cálice transborda.” (v. 5)
Agora, o Senhor se apresenta como aquele que acolhe o orante, com os sinais de uma hospitalidade generosa e repleta de atenções. O anfitrião divino prepara o alimento na “mesa”, um termo que, em hebraico, significa – em seu sentido primitivo – a pele do animal que se estendia na terra e onde se colocavam os víveres para uma refeição em comum. É um gesto de partilhar não só o alimento, mas também a vida, uma oferenda de comunhão e de amizade que cria vínculos e que expressa solidariedade. Depois está o generoso dom do óleo perfumado sobre a cabeça, que alivia o calor do sol do deserto, refresca e suaviza a pele, animando o espírito com sua fragrância. Finalmente, o cálice transbordante acrescenta uma nota de festa, com seu vinho saboroso, compartilhado com uma generosidade abundante. Refeição, óleo, vinho: são os dons que fazem viver e que dão alegria, porque vão além do que é estritamente necessário e expressam a gratuidade e a abundância do amor. O Salmo 104 proclama, celebrando a bondade que vem do Senhor: “Fazes crescer o feno para o gado, e a erva útil ao homem, para que tire da terra o seu pão: o vinho que alegra o coração do homem, o óleo que realça o brilho do rosto e o pão que sustenta o seu vigor” (v.14 e 15). O salmista é objeto de muitas atenções, pelas quais se vê um viajante que encontra refúgio em uma barraca acolhedora, enquanto seus inimigos devem olhar, sem poder intervir, porque aquele que era considerado sua presa recebeu refúgio, tornou-se hóspede sagrado, intocável. O salmista somos nós, quando somos realmente crentes em comunhão com Cristo. Quando Deus abre a sua barraca para nos acolher, nada pode nos causar dano.
Ao partir novamente o viajante, a proteção divina continua e o acompanha em sua viagem:
“Felicidade e graça vão me acompanhar
todos os dias da minha vida
e vou morar na casa do Senhor
por muitíssimos anos.” (v. 6)
A bondade e a fidelidade de Deus são a escolta que acompanha o salmista que sai da barraca e se coloca em caminho novamente. Além disso, é um caminho que adquire um novo sentido, tornando-se peregrinação rumo ao Templo do Senhor, o lugar santo no qual o orante quer “habitar” para sempre e ao qual quer “regressar”. O verbo hebraico que se utiliza aqui tem o sentido de “voltar”, mas, com uma pequena modificação vocálica, pode ser entendido como “morar”, e assim está traduzido nas versões antigas e na maior parte das traduções modernas. Ambas podem ser mantidas: voltar ao Templo e morar nele é o desejo de todo israelita, e morar perto de Deus, em sua proximidade e bondade, é o anseio e a nostalgia de todo crente: poder habitar realmente onde está Deus, perto d'Ele.
O rastro do pastor leva à sua casa, é a metade de todo caminho, oásis desejado no deserto, tenda de refúgio na fuga dos inimigos, lugar de paz onde experimentar a bondade e o amor fiel de Deus, dia a dia, na alegria serena de um tempo sem fim.
As imagens deste salmo, com sua riqueza e profundidade, acompanharam toda a história e a experiência religiosa o povo de Israel e acompanham os cristãos. A figura do pastor, em especial, evoca o tempo do Êxodo, o longo caminho no deserto, como um rebanho sob a guia do Pastor divino (cf. Is 63,11-14; Sal 77,20-21; 78,52-54). E, na Terra Prometida, era o rei quem tinha o dever de apascentar o rebanho do Senhor, como Davi, pastor escolhido por Deus e figura do Messias (cf. 2Sam 5,1-2; 7,8; Sal 78,70-72). Depois, no exílio na Babilônia, quase um novo Êxodo (cf. Is 40,3-5.9-11; 43,16-21), Israel é reconduzido à pátria como ovelhas dispersas e reencontradas, reconduzidas por Deus aos exuberantes pastos e lugares de repouso (cf. Ez 34,11-16.23-31). Mas é no Senhor Jesus que toda a força evocadora do nosso salmo chega à sua plenitude, encontra o cume do seu significado: Jesus é o “Bom Pastor” que vai buscar a ovelha perdida, que conhece suas ovelhas e que dá a vida por elas (cf. Mt 18,12-14; Lc 15,4-7; Jn 10,2-4.11-18). Ele é a via, o caminho justo que leva à vida (cf. Jn 14,6), a luz que ilumina o vale escuro e que vence os nossos medos (cf. Jn 1,9; 8,12; 9,5; 12,46). Ele é o anfitrião generoso que nos acolhe e nos coloca a salvo dos inimigos, preparando-nos a mesa do seu Corpo e do seu Sangue (cf. Mt 26,26-29; Mc 14,22-25; Lc 22,19-20), a definitiva do banquete messiânico no Céu (cf. Lc 14,15ss; Ap 3,20; 19,9). Ele é o Pastor real, rei na doçura e no perdão, entronizado no lenho glorioso da cruz (cf. Jn 3,13-15; 12,32; 17,4-5).
Queridos irmãos e irmãs, o Salmo 23 nos convida a renovar a nossa confiança em Deus, abandonando-nos totalmente em suas mãos. Peçamos com fé que o Senhor nos conceda caminhar para sempre pelos seus caminhos como rebanho dócil e obediente; que nos acolha na sua casa, em sua mesa e nos conduza a “águas tranquilas”, para que, ao acolher o dom do seu Espírito, possamos beber nas suas fontes, mananciais dessa água viva que “jorra para a vida eterna” (Jn 4,14; cf. 7,37-39).
Obrigado!
[No final da audiência, Bento XVI saudou os peregrinos em vários idiomas. Em português, disse:]
Queridos irmãos e irmãs,
Abordamos hoje o Salmo 23, um texto muito conhecido e amado, no qual se exprime a certeza de saber-se guiado e protegido pelo Senhor. Ele é o Pastor que nos conduz e que não permite que falte coisa alguma. Trata-se, de fato, de um texto cujas imagens, ricas e profundas, acompanharam toda a história de Israel. A figura do Pastor evoca os tempos do Êxodo, o longo caminho pelo deserto, onde Deus guia o seu Povo como um Pastor, para a Terra Prometida. Mas, é com Cristo que toda a força simbólica deste salmo encontra a sua plenitude de significado. Jesus é o Bom Pastor que vai à procura da ovelha perdida, que conhece as suas ovelhas pelo nome. Ele é a luz que ilumina o vale tenebroso, e tira-nos todo o medo. Ele é o anfitrião generoso que nos acolhe e põe a salvo dos inimigos, preparando-nos a mesa do seu Corpo e do seu Sangue. Assim sendo, peçamos ao Senhor que nos conceda caminhar, pelas suas sendas, como rebanho dócil e obediente, e nos sacie nas “águas repousantes” do seu Espírito, da fonte de água viva que jorra para a vida eterna.
Saúdo cordialmente todos os peregrinos de língua portuguesa presentes nesta Audiência, nomeadamente o grupo de diáconos permanentes vindos de Lisboa e os sacerdotes da Arquidiocese de Diamantina, acompanhados de seu bispo. Possa cada um de vós, guiado pelo Bom Pastor, ser por todo o lado um zeloso mensageiro do amor de Deus e uma testemunha corajosa da fé. Que Deus vos abençoe!
[Tradução: Aline Banchieri.
ZENIT, 05 de outubro de 2011