“A lei que penaliza o aborto provocado está a serviço de um valor altíssimo, que é a vida do nascituro, seu primeiro e mais fundamental direito”, afirma o cardeal Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo. Ele publicou artigo sobre o tema no jornal “Estado de São Paulo”, no sábado, 11 de agosto. Confira:
As audiências públicas promovidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o aborto deram ocasião a muitas manifestações favoráveis ou contrárias à descriminalização do aborto voluntário. Após ouvir a sociedade, o Supremo deverá responder à pergunta se os artigos 124 e 126 do Código Penal, que qualificam o aborto como crime e preveem sanções correspondentes, são contrários à Constituição de 1988 ou não.
Desejo participar desta reflexão e peço ao leitor que me dê o crédito da sua leitura. Como cardeal da Igreja Católica, eu poderia tratar o aborto do ponto de vista moral e religioso; mas aqui pretendo refletir apenas com argumentos compartilháveis também por quem não tem a mesma fé religiosa.
O motivo da existência de leis é a preservação de valores e bens de alto apreço. O bem patrimonial privado e público é um valor a ser preservado por leis, e o atentado contra ele leva o legislador a prever a lei que protege este bem e manda o julgador aplicar sanções que penalizem quem desrespeita o legítimo patrimônio. E não achamos isso estranho. Assim há leis para regular o trânsito e penalizar seus infratores; leis para preservar o ambiente e penalizar quem as desrespeita. E não é preciso ir mais além nesse raciocínio. Alguém pensa que a aplicação da lei ao infrator é uma injustiça contra ele?
O feto humano, desde a sua concepção, já é um ser humano
A lei que penaliza o aborto provocado está a serviço de um valor altíssimo, que é a vida do nascituro, seu primeiro e mais fundamental direito. Sei bem que existem diversas percepções sobre o início da vida humana. Penso que o feto humano, desde a sua concepção, já é um ser humano, sujeito de direitos. Não consigo pensar que ele se torne “humano” apenas num estágio posterior do seu desenvolvimento no útero da mãe. A mulher, da mais inculta à mais letrada e conhecedora dos segredos da ciência, quando tem a notícia do início de uma gravidez, exclama “estou esperando um filho!”. E quem diria que não é assim ou que ela está iniciando a gestação de “algo” indefinido, que apenas depois, mais tarde, se tornará um filho seu, um ser humano como ela? O embrião é humano, desde o primeiro instante de sua gestação. Se não o fosse, não haveria lei alguma, ou Constituição de país nenhum, capaz de torná-lo “humano”, em momento posterior. Não é uma concessão da lei; é um fato da natureza, que precede à própria legislação positiva.
Argumenta-se que o bebê em gestação ainda não seria sujeito dos mesmos direitos dos já nascidos e dos adultos, e isso é verdade. No entanto, sendo “humano”, ele já tem o direito à proteção dos adultos e de leis que lhe assegurem direitos proporcionais à sua condição, como a saúde, a proteção contra a violência e, sobretudo, o direito à vida. É da percepção mais elementar da condição humana que os adultos protejam e defendam os humanos mais fracos e indefesos, como é o caso das crianças desde a mais tenra idade. Seria cínico e desumano não reconhecer a dignidade humana do nascituro e aprovar atitudes agressivas contra ele, sobretudo a iniciativa de lhe tirar a vida.
Claramente, penso que apenas numa condição o aborto poderia ser visto com indiferença pela sociedade e suas leis: só se o bebê, em qualquer fase de sua gestação, não fosse um ser humano. Mas quem o poderia afirmar, sem esconder a mais elementar verdade científica? Sendo o nascituro um ser vivo da mesma espécie de quem o gerou, o aborto interessa à sociedade como um todo e cabe à comunidade humana civilizada fazer leis e cuidar de sua aplicação, quando se trata de proteger e defender os inocentes e indefesos. Do contrário, ela deixa de ser civilizada e humana.
Preservar o “valor”, que é a vida
Então o aborto deve continuar a ser tipificado como crime no Código Civil? Minha resposta vem como uma nova pergunta: existe algum modo de proteger e preservar o “valor”, que é a vida dos nascituros, sem que haja uma lei expressa que o estabeleça e que também preveja sanções para quem, de modo direto ou indireto, provoca o aborto voluntariamente? A finalidade da lei não é, antes de tudo, a penalização da mulher que o faz, mas a proteção do seu filho e dela mesma. Existe alguma possibilidade diversa de conseguir esse objetivo, sem ser por uma lei adequada, contrária ao aborto?
A gestante também deve ter a proteção da sociedade mediante uma legislação adequada e políticas que a implementem de maneira eficaz. Mas o preço pela falta ou pela ineficácia de leis que assegurem a dignidade e os legítimos direitos da mulher não deve jamais ser cobrado do filho dela, inocente e indefeso.
Argumenta-se, também, que a lei que qualifica o aborto voluntário como crime limita os direitos fundamentais da mulher e desrespeita a sua autonomia, sua dignidade e sua integridade física e psíquica. Sinceramente, não me parecem argumentos que justifiquem a desproteção legislativa do nascituro. Não é belo e não é adequado ver no filho um “agressor” de sua mãe…
As questões em relação aos direitos e à dignidade da mulher podem e devem ser resolvidas sem suprimir a vida dos bebês ainda por nascerem. A maternidade não é doença nem mácula para a dignidade da mulher. A liberdade dela é preciosa, mas também está vinculada à responsabilidade que lhe corresponde. A gravidez inesperada pode ser prevenida com meios adequados, sobretudo com a educação e a informação. A falta de condições econômicas para criar os filhos deve ser tratada com seriedade e a mulher que se torna mãe tem o direito ao apoio da sociedade para encaminhar bem o filho na vida. Mas a injusta pobreza de muitos não pode ser argumento para eliminar o inocente e indefeso. As cifras presumidas de abortos clandestinos e os custos das complicações decorrentes devem ter uma solução que, honestamente, não poderia ser a legalização do morticínio de bebês ainda no ventre de suas mães.
Cardeal Odilo Pedro Scherer
Artigo publicado no Jornal “O Estado de S.Paulo”, ed. 11/8/2018