Cardeal Koch se pronuncia na celebração ecumênica na Igreja de São Miguel, em Hildesheim – EPA
14/03/2017 13:59
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Cidade do Vaticano (RV) – “Na Doutrina da Justificação, aquilo que na realidade nos une”, é o título do artigo escrito pelo Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristão, Cardeal Kurt Koch, publicado no jornal da Santa Sé “L’Osservatore Romano”.
“Em 2017, o mundo cristão comemora os quinhentos anos da Reforma. Tratando-se do primeiro centenário da Reforma em época ecumênica, não serão mais tons confissionalmente facciosos e polêmicos que irão a marcar a comemoração, mas um espírito ecumênico.
Estas circunstâncias favoráveis são devidas, em particular, ao fato de que não recordaremos somente os quinhentos anos da Reforma, mas também os cinquenta anos de um intenso diálogo entre católicos e protestantes, um lapso de tempo durante o qual pudemos descobrir o quanto nos une.
Resultado positivo dos diálogos ecumênicos foi aquele de demonstrar que, nas verdades fundamentais da fé cristã, foi possível formular um consenso ecumênico, evidenciando também que as diferenças teológicas ainda existentes não colocam em discussão tal consenso e que, por consequência, as condenações doutrinais do século XVI, quer da parte católica como da parte protestante, não têm hoje mais valência entre os parceiros ecumênicos.
Declaração conjunta sobre a Doutrina da Justificação
Isto é verdadeiro sobretudo a propósito da “Declaração conjunta sobre a Doutrina da Justificação“, assinada em 31 de outubro de 1999 em Augsburg, pela Federação Luterana Mundial e pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos.
O fato de que precisamente em relação à questão central que levou, no século XVI, à Reforma e a seguir à divisão da Igreja, foi possível se chegar a um amplo consenso que pode ser considerado como um verdadeiro marco ecumênico.
O diálogo ecumênico dos últimos decênios mostrou que também a superação de tais divisões e a retomada da unidade da Igreja, poderão ocorrer somente no caminho de uma leitura e de uma interpretação comum da Sagrada Escritura. De fato, a escuta comum da Palavra de Deus testemunhada na Sagrada Escritura levou a uma fundamental convergência na compreensão da Doutrina da Justificação.
Viver na esperança significar voar
Para compreender de maneira mais profunda a colaboração entre graça de Deus e liberdade do homem no quadro da salvação, pode ser útil refletir sobre a comparação utilizada pelo teólogo medieval Boaventura, para ilustrar a força da esperança escatológica.
Boaventura compara o movimento da esperança ao voo do pássaro, que paira no ar e que pelo ar se deixa levar. Mas para voar, o pássaro deve, antes de tudo, abrir as asas o mais que puder e empregar, em seu movimento, todas as suas energias. Ele mesmo deve depois colocar-se de forma a iniciar o voo e subir até a uma alta cota.
Viver na esperança significa, portanto, voar. Quem espera, de fato, deve esforçar-se, como faz o pássaro, para movimentar-se e para mover todos os seus membros, para contrastar a força da gravidade que o empurra para baixo, para alcançar as verdadeiras alturas e para deixar-se levar pelo ar.
Com esta comparação, Boaventura sugere que a grande esperança da fé não torna supérfluo o agir do homem, mas lhe permite, pelo contrário, adquirir a justa forma e a sua liberdade. Voar requer todas as nossas energias; mas é possível somente se nos entregarmos totalmente ao ar que nos circunda e que nos leva. Como o pássaro pode voar porque sabe ser leve, assim também o cristão será capaz de voar melhor se não der a si mesmo muito peso e, sobretudo, não se deixar esmagar pela força da gravidade dos pecados.
Relação entre fé e obras
Nesta mesma direção aponta uma imagem análoga utilizada por Martinho Lutero para esclarecer a relação entre fé e obras: “O Evangelho é como uma brisa fresca e delicada no grande calor do verão, é consolação na angústia da consciência. Mas não apenas a brisa do Evangelho deu refresco e consolação às nossas forças, nós não devemos permanecer indolentes, deitar e roncar; ou mesmo, quando o Espírito de Deus apaziguou, aquietou e consolou a nossa consciência, então devemos demonstrar também a nossa fé com as boas obras Deus nos mandou e indicou nos dez mandamentos”. De fato quem, na fé, superou a atormentada preocupação pela própria salvação pode e deve assumir as preocupações dos homens e do mundo.
A mensagem da justificação do homem pela fé não nos divide como cristãos, mas nos une
Se tivermos em mente estas semelhanças, compreenderemos também porque o teólogo católico Otto Hermann Pesch, expert em Lutero, definiu a disputa desencadeada no tempo da Reforma sobre fé e sobre obras, como “a mais supérflua de todas as questões controversas”.
A crucial mensagem da justificação do homem pela fé, redescoberta durante a Reforma, não nos divide como cristãos, mas nos une. E não deveria nos dividir nunca, não obstante isto tenha ocorrido por séculos, o demonstra também um testemunho que remonta a uma época que precede a abertura ecumênica da Igreja Católica durante o Concílio Vaticano II, ou seja, o testemunho de Santa Teresa do Menino Jesus (1873-1897), que o Catecismo da Igreja Católica apresenta com o objetivo de explicar a própria interpretação da Doutrina da Justificação: “Ó meu Deus…, depois do exílio da terra, espero juntar-me a vós na Pátria. Mas não quero acumular méritos para o Céu, quero trabalhar só pelo vosso Amor. No fim desta vida, comparecerei perante vós de mãos vazias, porque eu não peço, Senhor, que tenhas em conta as minhas obras. Todas as nossas justiças têm imperfeições a vossos olhos. Eu quero pois revestir-me da vossa justiça e receber do vosso amor a posse eterna de vós próprio”.
Não é por acaso que Santa Teresa tenha rejeitado a imagem tradicional da santidade, que vê o santo como um herói da virtude, como um “desportista” capaz de altíssimos desempenhos religiosos. Para ela, a santidade cristã não se realiza em algo de sensacional ou de heroico, mas vive no cotidiano sob o véu da discrição de uma fé não vistosa, assim que é a própria fé o conteúdo essencial da santidade.
Teresa está convencida de que a santidade consiste não tanto em exercícios e desempenhos religiosos, mas em uma atitude existencial de fundo, nutrida pela fé, na vida de todos os dias. Por isto, desviou o olhar das boas ações e das obras piedosas, anunciando e louvando, isto sim, com alegria, a graça de Deus. Ela sabia, de fato, que na vida da fé, no final das contas, tudo é graça e que nada é tão distante da existência cristã quanto a piedosa especulação sobre a recompensa celeste pelas obras boas: “Devemos fazer tudo o que podemos fazer, por amor a Deus, mas é indispensável, na verdade, colocar toda a nossa confiança no Único que santifica as nossas obras e que pode santificar-nos sem elas”.
Mensagem plenamente cristã do “somente pela graça”
Esta é, nas palavras de uma Santa católica do final do século XIX, a doutrina da justificação pura. Teresa, de fato, não somente anunciou a mensagem plenamente cristã do “somente pela graça”, mas a testemunhou com a sua própria vida. Esforçando-se por viver em tudo na graça de Deus, antecipou o entendimento ecumênico entre a Igreja Católica e as Igrejas nascidas da Reforma, e isto ocorreu na “pequena via” que ela percorreu, um caminho sobre o qual a ‘sola fide’ se reconcilia até mesmo com a ‘sola caritate’, e em primeira linha não com o amor humano, mas com o amor de Deus pelos homens.
Comemoração comum da Reforma impensável sem um consenso ecumênico sobre a Doutrina da Justificação
É um sinal promissor o fato de que este entendimento ecumênico de uma Santa esteja se realizando. Com isto, também a tradicional oposição entre piedade católica e piedade protestante foi superada, como demonstra o que escreve o grande teólogo protestante e mártir cristão do regime nazista, Dietrich Bohhoeffer, falando de uma conversa ocorrida com um pastor francês: “Nos havíamos perguntado sobre o que queríamos realizar, no fundo, com a nossa vida. Ele disse: quero me tornar um santo. Me tocou muito aquele momento. Todavia, discordei, dizendo mais ou menos: eu quero aprender a acreditar”.
Se Dietrich Bonhoeffer tivesse conhecido Santa Teresa de Lisieux, provavelmente não teria mais visto uma contraposição entre o se tornar santos e aprender a crer, compreendendo que, para esta santa católica, o fulcro da santidade cristã é precisamente a fé.
Certamente, Teresa e Dietrich Bonhoeffer já chegaram a um acordo em relação a isto, no céu. A nós, em nossa vida e na nossa convivência ecumênica, permanece a tarefa de tirar as justas consequências deste belo testemunho de consenso ecumênico sobre a Doutrina da Justificação, também nas suas diversas perspectivas espirituais desenvolvidas nas várias tradicionais Confissões.
E isto podemos e devemos fazê-lo em particular em 2017, ano da comemoração comum da Reforma, comemoração que seria impensável sem um consenso ecumênico sobre a Doutrina da Justificação”.
( L’Osservatore Romano – JE)
Fonte: Site da Rádio Vaticano