Estamos nos encontrando aqui mais uma vez para a reflexão dos Passos da Sobriedade. Iniciamos pelo Passo Admitir, que nos remeteu ao reconhecimento dos próprios vícios e faltas cometidas, e que sozinhos em nossa arrogância seria impossível dar continuidade a um processo de mudança. Com o Passo Confiar, pudemos nos aproximar de Deus através das orações e clamar pela melhora do nosso sofrimento. No Passo Entregar, colocamos todas as nossas dificuldades e alegrias nas mãos do Senhor. E no Passo Arrepender-se voltamos para a Sua graça, para a Sua casa, onde fomos acolhidos, pois fomos aceitos uma vez que nos propomos a trabalhar as nossas atitudes.
Ao vivenciarmos o Passo Confessar, tivemos a oportunidade de pedir perdão a Deus, a nós mesmos e aos nossos irmãos. Mas foi o Passo Renascer que nos trouxe o alívio de sermos uma nova pessoa. E com o movimento que fizemos no Passo Reparar resgatamos nossa dignidade e a confiança daqueles a quem prejudicamos. Só assim tivemos condições de chegar até aqui para refletirmos sobre o Passo Professar a Fé.
Às vezes confundimos o que entendemos por fé, com o carisma que temos pela criação divina. O sentimento que despertamos pelas coisas de Deus, pelas Suas obras, é muito importante que o tenhamos, para que possamos compartilhar das Suas maravilhas. Então, a natureza, a humanidade, a constituição do universo, tudo isso faz parte da generosidade de Deus para que possamos nos sentir em plenitude e fazendo parte dessa grandiosidade.
Porém, a fé é algo que vai além. A fé não consiste em coisas ou situações que acontecem fora de nós. A fé está no nosso âmago, na mais íntima interioridade. Recebemos de Deus a capacidade de acolher a mística da fé, mas essa capacidade precisa ser trabalhada, precisa ser renovada. Em muitas situações nos sensibilizamos com o estado de miséria, inclusive espiritual que as pessoas atravessam, e nos motivamos a trabalhar pela causa. Começamos a nos envolver com a dor do outro, cheios de vontade e de persistência.
Contudo, trabalhar para o reino não é o mesmo que viver para o reino. Trabalhar para o reino é o mínimo que devemos fazer, na condição mais humilde possível. Trabalhar para o reino significa fazer parte dele, se colocando à disposição e depositando-se em favor de alguma coisa ou pessoa que não sejamos nós mesmos. As nossas obras não serão preenchidas de bênçãos, se antes Deus não possuir o nosso coração. Viver para o reino representa ser fiel, acreditar em Seus propósitos e exercitar a nossa espiritualidade com alegria e disposição.
Quando a gente confunde a fé que é fruto da nossa interioridade com as nossas atividades que são frutos da nossa função externa, nossos méritos podem se tornar causa de nossa condenação, pois corremos o risco de reduzir a fé às atividades, sem passar pela experiência da Palavra. As citações que lemos na Bíblia de tantos personagens não são historinhas que confirmam unicamente a existência de Deus, mas são exemplos de vivencia de fé, de pessoas que se preencheram de Dele, que viveram a sua conversão intensamente. E nós, vamos ficar sem passar pelo desafio de experimentar Deus em nós?
Aquele que se debruça nas atividades acreditando que é ali que abastece a sua fé, termina por se esgotar em tanto se dedicar, e logo vai esmorecer-se espiritualmente pelo excesso de trabalho. E essa dedicação às ações comunitárias, pastorais e filantrópicas perde o sentido, se não temos vida íntima com Deus. Se nos limitamos apenas em trabalhar pelo próximo, sem mergulhar profundamente nos mistérios do Senhor, vamos nos cansar, vamos nos decepcionar. Pior, pelo desgaste, as nossas fragilidades, que deveriam estar sendo trabalhadas através da espiritualização, começarão a tomar forma e passaremos a nos auto valorizar.
Se estamos nos relacionando constantemente, então estaremos nos expondo. E se nos limitamos a viver uma vida de corre-corre, a nossa interioridade perderá a sua real qualidade, passando a se evidenciar primeiramente aquilo do que estamos mais preenchidos. Então, surgirão as insatisfações, as palavras sem freios, a impaciência, o desgaste, o esforço em vão. Ainda bem que Deus se vale do nosso próprio dia-a-dia para mexer na nossa história, para criar oportunidades de melhorar nossa maneira de ser. Mas quando não evoluímos a nossa fé, quando valorizamos mais a ação que a oração, a nossa interioridade fica cheia de nada e os nossos defeitos vão tomando espaço com a nossa permissão, é claro.
Vou relatar aqui uma estória que pode ser parecida com a de muitos: um senhor passou a sua vida à serviço do trabalho para o sustento de sua família. Dedicado, procurava ir a Igreja sempre que podia, pois trabalhava até nos finais de semana. Viveu sem se perguntar muito por que estava ali. Só sabia que tudo aquilo não fazia diferença entre existir e não existir. Quando começou a se dar conta disso também começou a se inquietar. Já era tempo da sua aposentadoria. Primeiro, viveu um momento de medo, pois o que iria fazer depois? Sempre fora muito aplicado e tinha certo nível de conhecimento, mas nunca se valeu dele, a não ser para o seu próprio trabalho.
Assim, chegou o tempo de sua aposentadoria e passando a perceber mais as necessidades daqueles que viviam em sua comunidade, resolveu entregar um pouco do seu tempo em trabalhos comunitários. Passou também a participar mais efetivamente das missas e se sentia contagiado por uma alegria e uma satisfação incrível. Desejou entregar-se inteiramente a esta nova opção de vida, pois tudo o empolgava. Como não acontecera isso consigo antes? Seu tempo teria sido tão bem aproveitado…
Argumentava a todos que estava vivendo a sua conversão da forma mais bela possível. E resolveu por fim ocupar todo o seu tempo em prol de ações beneficentes. Ia buscar alguém que precisava de ajuda, acumulava em um pequeno galpão roupas que as pessoas doavam para distribuição, e foi alfabetizar os adultos à noite. Sua vida agora não tinha mais espaço para tristeza ou desânimo. O trabalho foi muito bem recebido na comunidade. Muitas pessoas procuravam por sua ajuda e outras também o procuravam para se juntar a ele nessa tarefa, que afirmava ele: quanto mais pessoas ajudando, melhor.
Contudo, engajado em tantas atividades, sempre procurou coordenar a todas, a princípio orientando, depois direcionando e mais adiante ordenando. Só ele sabia a melhor maneira de conduzir as tarefas, só ele tinha o conhecimento específico para manter a ordem das coisas. Não aceitava sequer sugestões. Quanto a sua família, já não se fazia presente, a não ser para manter o controle. A sua conversão agora seguia um ritmo corrido, pois ainda participava das missas e orações, com a diferença de que o fazia como se estivesse cumprindo um horário, onde supria suas obrigações de cristão. Só faltava bater cartão.
Este senhor excedeu-se tanto em seu altruísmo, que se esqueceu de olhar para si mesmo e rever suas condições, como se tivesse se colocado no automático. Diante desta situação, sentiu-se tão bem que queria ficar assim mais e mais, não conseguindo perceber que já não fazia aquelas atividades em nome do outro, mas em nome da satisfação que essas ações lhe davam. Então, quando alguma coisa saia fora do esperado este senhor perdia o controle e alterava-se com aqueles que estavam a seu lado. É preciso cuidar com os excessos, com todos os excessos. A linha que define onde começa o que pode fazer bem, para se transformar em uma situação prejudicial é quase invisível. Primeiro porque ficamos muito deslumbrados com a nossa própria satisfação e segundo porque quando nos dedicamos exageradamente a uma coisa, certamente estamos deixando outra pra traz. Pensemos nisso com seriedade.
Malena Andrade – Psicóloga assessora da Pastoral da Sobriedade da Diocese de Blumenau