Por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração
SÃO PAULO, quinta-feira, 18 de agosto de 2011 (ZENIT.org) – Apresentamos o comentário à Liturgia da Palavra da solenidade da Assunção de Nossa Senhora ao Céu – Ap 11, 19a; 12, 1.3a.10 – 1 Cor 15, 20-27a – Lc 1, 39-56 –, redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes – São Paulo). Doutor em liturgia pelo Pontificio Ateneo Santo Anselmo (Roma), Dom Emanuele é monge beneditino camaldolense.
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ASSUNÇÃO DE NOSSA SENHORA AO CÉU
Uma mulher vestida de sol
Leituras: Ap 11, 19a; 12, 1.3a.10 – 1 Cor 15, 20-27a – Lc 1, 39-56
“Hoje a virgem Maria, mãe de Deus, foi elevada à gloria do céu. Aurora e esplendor da Igreja triunfante, ela é consolo e esperança para o vosso povo ainda em caminho….” (Prefácio da Festa).
Em breves e sublimes palavras, a liturgia nos oferece o cerne do mistério que a Igreja contempla e celebra hoje na Solenidade de Nossa Senhora Assunta ao céu. Ela canta a intrínseca e inseparável relação da Virgem Maria com Cristo, morto e ressuscitado e, ao mesmo tempo, com o povo de Deus peregrino na história, e que de Cristo é o corpo vivo. Este povo peregrino fica caminhando na esperança rumo à vinda gloriosa do mesmo Cristo, consolado e fortalecido nas suas tribulações pelo exemplo e a intercessão da Bem-Aventurada Virgem.
Ao celebrarmos o mistério da Ressurreição e Ascensão de Jesus Cristo junto ao Pai, já realizado plenamente em Maria, Mãe de Deus e mãe nossa, junto com a Igreja vislumbramos nela a meta do nosso caminho, vivenciado ainda através das provações do deserto da história, fortalecidos, porém, pela esperança da vitória final sobre os sofrimentos e a morte; vitória esta que já resplandece na história e no rosto de Maria Assunta.
“Cristo Jesus subiu aos céus e preparou, no reino eterno, um lugar para sua mãe, a Santa Virgem, aleluia”: canta a Antífona das Primeiras Vésperas da Solenidade. Cristo Jesus, ressuscitado dos mortos “como primícias dos que morreram” (1 Cor 15,20 – primeira leitura), cumpre primeiro em sua mãe a sua páscoa, que é também o destino e a meta de todos os membros do seu corpo. A Leitura breve das Primeiras Vésperas, introduz a solenidade com as palavras do apóstolo na carta aos Romanos e que evidenciam como, no plano de Deus, a meta do caminho está potencialmente já inserida no primeiro passo do próprio caminho da salvação: “Aqueles que Deus predestinou, também os chamou; e aos que chamou, também os tornou justos; e aos que tornou justos, também os glorificou” (Rm 8,30 ).
Na carta aos Efésios Paulo sublinha com vigor o dinamismo da ressurreição participada em Cristo: “Deus manifestou sua força em Cristo, quando o ressuscitou dos mortos e o fez assentar à sua direita nos céus… Com ele nos ressuscitou e nos fez assentar nos céus, em Cristo Jesus, a fim de mostrar nos tempos vindouros a extraordinária riqueza da sua graça, pela sua bondade para conosco” (Ef 1,20.2, 6-7).
Maria, por primeiro, foi assunta por graça ao céu em alma e corpo, na integridade da sua pessoa, superando os laços da morte, no exemplo e em solidariedade a seu filho, Jesus ressuscitado. Ela nos antecipou ao chegar à meta; tornou-se, de tal modo, sinal certo do caminho a percorrer e do objetivo a alcançar que nos é prometido por graça.
O vidente do apocalipse, com seu olhar profético, antecipa na luz da fé o futuro do povo de Deus e orienta nossos passos para aquela meta: “Abriu-se o templo de Deus que está no céu e apareceu no templo a arca da aliança…. Então apareceu no céu um grande sinal: uma mulher vestida de sol, tendo a lua debaixo dos pés e, sobre a cabeça, uma coroa de doze estrelas” (Ap. 11,19a; 12.1).
A visão profética deixa vislumbrar aquilo que na experiência sofrida do dia a dia daqueles que acreditam no Senhor e o seguem, fica escondido e constitui um desafio sempre novo à fé e à esperança de seus seguidores. Em Cristo morto e ressuscitado, que é o verdadeiro templo de Deus (cf Jo, 2, 21-22), foi inaugurada a aliança nova e definitiva. A “arca”, guardada no segredo, na tenda de Moisés e no templo de Salomão em Jerusalém, como símbolo da aliança, agora se torna visível, no céu. A liturgia identifica a arca com Maria, pois ela guarda em si mesma e revela ao mundo a aliança vivente que é o próprio Cristo.
A “arca da aliança”, no Antigo Testamento simbolizava o compromisso de Deus em favor do seu povo, a presença fiel com a qual ele o acompanhava em todas as suas aventuras, alegres e tristes. Continha também as indicações de vida (as duas tábuas da Lei), que o povo devia seguir para responder de maneira digna à sua vocação de povo escolhido e chamado à liberdade.
Lucas, no evangelho de hoje, descreve a visita de Maria à sua prima Isabel nos mesmos termos de festa e alegria com os quais a arca de Deus foi acolhida por parte do rei Davi na cidade de Jerusalém, que se torna daquele momento em diante a “cidade santa”, a “cidade do Senhor” (2 Sam 6). Maria é a verdadeira arca da aliança enquanto, depois de ter recebido na fé e gerado na carne o filho de Deus (São Leão Magno), o apresenta ao mundo novo dos simples de coração, como o menino João, que reage dançando de alegria ao aproximar-se de Jesus, ainda escondido no ventre de sua mãe.
Os cantos de agradecimentos e de louvor de Isabel e de Maria interpretam não somente os sentimentos das duas mães, fecundas por graça, mas também a alma profunda de toda a história renovada. Esta presença do Senhor no meio do seu povo o sustenta em seu caminho e no seu combate.
No céu aparece o segundo grande sinal: “uma mulher vestida de sol, tendo a lua debaixo dos pés e, sobre a cabeça, uma coroa de doze estrelas”. A mulher no seu esplendor de luz, aparece já capaz de dominar as mutabilidades da história, simbolizadas pela lua posta debaixo dos pés. Mas ela se encontra ao mesmo tempo na condição de extrema fragilidade, pelo fato de estar grávida e estar nas dores do parto. Diante dela se posiciona o dragão com a intenção de devorar o filho que está para nascer. Ele porém, será posto a salvo junto de Deus, e a mulher acolhida no deserto, como Israel no seu caminho para a terra prometida.
A tradição da Igreja, desde os Padres dos primeiros séculos, reconhece no símbolo desta mulher, gloriosa e frágil ao mesmo tempo, as etapas de realização da mesma e única Palavra de Deus que cumpre seu dinamismo ao longo da história da salvação. Nela vislumbra a comunidade de Israel da qual nasce o messias; a Igreja que gera o Cristo em cada cristão pela pregação do evangelho e pela fé; enfim, vê também Maria que acolhe Cristo na sua fé e o gera segundo a carne.
No contexto da celebração da Solenidade de Maria Assunta ao céu, o texto hoje proclamado nos orienta a contemplar em conjunto a experiência de Maria e o caminho de fé da Igreja e de cada cristão e cristã.
A Igreja celebra a Virgem Maria como a “Mãe de Deus” e do seu unigênito Jesus Cristo, por ter dado ao Verbo de Deus sua própria carne. Hoje aquela mesma carne é glorificada e acolhida na plenitude da vida de Deus. Quando confessamos na fé que Maria foi Assunta junto de Deus em alma e corpo, falamos da integridade da sua pessoa, com todos seus sentimentos e sua existência humana de mulher. Ela viveu deixando-se guiar em plena obediência e liberdade de amor pelo Espírito, que a tornou fecunda da vida mesma de Deus.
O cântico do “Magnificat”, centro do evangelho de hoje, constitui o reconhecimento humilde e alegre por parte de Maria das maravilhas cumpridas por Deus na sua vida pessoal, e ainda mais na história do seu povo e em prol da inteira família humana.
A obra mais maravilhosa cumprida pelo Pai, e objeto da contemplação de hoje, porém, é a própria Maria. Seu primeiro “sim”, expressão de fé incondicionada ao surpreendente anúncio do anjo em Nazaré, desemboca no “sim”, pronunciado no grito silencioso da alma transpassada pela espada da dor, aos pés da cruz. De Nazaré ao calvário, ela acompanhou com renovada entrega de si mesma o caminho do Filho, guardando no seu coração sem entender, o que acontecia, e sempre confiando na fidelidade de Deus às suas promessas. “Eles, porém, não compreenderam a palavra que ele lhes dissera… Sua mãe, porém, conservava a lembrança de todos estes fatos em seu coração” (cf Lc 2, 50.51).
Enquanto contempla e celebra em Maria esta obra maravilhosa de Deus, a Igreja reconhece nela seu próprio inicio e modelo, pela fé e o amor com os quais ela consentiu ao chamado de Deus, chamado que a conduziu até a plenitude do reino no céu.
O Concílio Vaticano II, na constituição Lumen Gentium, que trata do mistério da Igreja, da sua identidade e da sua missão, dedica o inteiro capítulo oitavo à Bem-Aventurada Virgem Maria no mistério de Cristo e da Igreja. O dogma da assunção de Maria ao céu em corpo e alma foi definido em maneira explícita pelo papa Pio XII no ano 1950, mas ele estava enraizado na tradição espiritual da Igreja e no culto dos fiéis, desde os primeiros séculos. Renovando e enriquecendo o ensino dos Padres da Igreja e da sua tradição secular à luz do dogma, o Concílio oferece à inteligência espiritual da Igreja e à piedade dos fiéis novos horizontes, que nos fazem descobrir ainda melhor o lugar privilegiado de Maria no mistério de Cristo e da Igreja e o grande dom que ela constitui na vida de cada um de nós.
O Concílio destaca esta profunda proximidade de Maria com a experiência humana e espiritual do inteiro povo de Deus, apresentando-a como “mãe da igreja”. Pela profunda unidade com todos os membros da Igreja, Maria “é saudada também como membro super-eminente e de todo singular da Igreja, como seu tipo e modelo excelente na fé e na caridade. E a Igreja católica, instruída pelo Espírito Santo, honra-a com afeto de piedade filial como mãe amantíssima” ( LG 53).
Partilhando a mesma sorte de combate e de graça, o povo cristão, com o instinto profundo da fé, desde sempre tem sentido a Virgem Maria como sua intercessora junto do Pai e do seu Filho unigênito.
O grande horizonte teológico delineado pelo Concílio com suas reflexões sobre a Virgem Maria no mistério de Cristo e da Igreja, e as riquezas espirituais oferecidas pela liturgia das variadas festas marianas, constituem uma preciosa oportunidade para renovar e valorizar os tesouros de autêntica devoção, que o povo de Deus tem criado e guardado ao longo dos séculos, sobretudo na América Latina e no Brasil.
Como o batismo, que nos conforma ao Cristo morto e ressuscitado, nos impele a viver na terra com a tensão da vida plena em Deus, assim, ao celebrarmos a elevação à gloria do céu da Virgem Maria, mãe do filho de Deus, pedimos ao Senhor com a Igreja: “dai-nos viver atentos às coisas do alto, a fim de participarmos da sua glória” (Oração do dia).