Por Gabriel Frade, professor de Liturgia e Sacramentos
Apresentamos o comentário à liturgia do 6º Domingo da Páscoa – At 8,5-8.14-17; Sl 65 (66),1-3a.4-5.6-7ª.16.20; 1Pd 3,15-18; Jo 14,15-21 – redigido pelo professor Gabriel Frade. Natural de Itaquaquecetuba (São Paulo), Gabriel Frade é leigo, casado e pai de três filhos. Graduado em Filosofia e Teologia pela Pontificia Universitas Gregoriana (Roma), possui Mestrado em Liturgia pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora D’Assunção (São Paulo). Atualmente é professor de Liturgia e Sacramentos no Mosteiro de São Bento (São Paulo) e na UNISAL – Campus Pio XI. É tradutor e autor de livros e artigos na área litúrgica.
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6º Domingo da Páscoa
Leituras: At 8,5-8.14-17; Sl 65 (66),1-3a.4-5.6-7ª.16.20; 1Pd 3,15-18; Jo 14,15-21.
“Vinde, Pai dos pobres, vem doador dos dons, vem, luz do coração; grande consolador, doce hóspede da alma, doce consolo.”
(Veni Sancte Spiritus – Sequência de Pentecostes. Séc. XIII).
E a Palavra de Deus crescia (At 6,7).
Assim terminava a leitura de Atos dos Apóstolos, proposta pela Liturgia da Palavra do Domingo anterior. A primeira leitura hoje nos apresenta a continuação e a explicitação desse crescimento da Palavra de Deus.
Filipe – que com toda probabilidade não se trata de Filipe, o apóstolo do grupo dos Doze, mas um daqueles Sete eleitos do grupo dos “helenistas” (At 6,1-7) – é descrito em movimento: ele sai de Jerusalém e desce a uma cidade da Samaria, vai para a região dos samaritanos.
Os samaritanos, como se sabe, não eram estimados em Israel. O autor do livro do Eclesiástico, por exemplo, dirá com palavras fortes que os samaritanos são “povo estúpido que habita em Siquém” (Eclo 50,26. Trad. Bíblia de Jerusalém, ver a respectiva nota explicativa no texto). O evangelho de João, no episódio da cura do cego de nascença, nos faz saber que chamar alguém de “samaritano” em Israel, era o equivalente a uma ofensa ou xingamento (Jo 8,48).
Por outro lado, os samaritanos também não facilitavam a vida dos judeus. O evangelista Lucas (Lc 9,52s) nos dá a conhecer a má vontade e o despeito com os quais os samaritanos tratavam os peregrinos judeus que iam em direção a Jerusalém, para as grandes festas do calendário religioso judaico: simplesmente lhes negavam hospitalidade.
Apesar desses “antecedentes” provocados por divergências em relação à Torá – os judeus sempre consideraram os samaritanos hereges – Jesus, embora sendo igualmente judeu, demonstra uma grande benevolência para com os samaritanos.
São Lucas, de modo particular através de seu evangelho, nos narra essa simpatia de Jesus, oferecendo-nos algumas ocasiões onde os samaritanos aparecem em situações favoráveis perante a benevolência divina (Lc 10,33; 17, 16); de fato, é famosa aquela passagem Lucana que a tradição chamou de o “Bom Samaritano” (Lc 10,29-37).
Mas, ao olhar para esses antecedentes de inimizade recíproca, bem poderíamos nos perguntar se poderia existir de fato para um judeu algum “bom samaritano”. De modo análogo, muitos hoje se perguntam – dentro de uma ótica apenas humana – se haveria de fato, algum “bom ladrão” (Lc 23,39 – curiosidade: a Catedral de São José dos Campos – São Paulo – é dedicada a São Dimas, o bom ladrão)…
Sem querer aprofundar aqui estes argumentos, basta afirmar que a lógica de Deus não é lógica humana: Filipe, um cristão vindo do judaísmo helênico, vai para a Samaria, e a Boa Nova começa a se expandir justamente por onde, num primeiro momento, pareceria pouco provável.
Mais uma vez, Deus dá uma atenção maior aqueles que são desprezados e mais fracos.
Vale a pena destacar ainda, o fato de Filipe realizar as obras que Jesus mesmo fez (cf. Jo 14,12) ao chegar nessa cidade samaritana; quase a dizer que é o próprio Jesus que permanece na pessoa de Filipe (At 8,6).
O fruto mais evidente dessa presença maior e misteriosa na pessoa de Filipe (“ouviam falar nos sinais que operava ou viam-nos pessoalmente” v. 6) é a “grande alegria” (v. 7), quase que inexplicável, que surge naqueles samaritanos que acolheram a Boa Nova: eles que são a prefiguração do anúncio do evangelho a toda a humanidade. “Aclamai a Deus, terra inteira, cantai glória ao seu nome…” (Salmo Responsorial).
Essa alegria é ratificada com o dom do Espírito Santo, comunicado pelos apóstolos (v. 15.17), eles que haviam recebido por sua vez o Espírito Paráclito do próprio Senhor e que com eles permaneceu sempre (cf. Evangelho: Jo 14,16).
Em virtude desse mesmo Espírito atuante na liturgia (Catecismo da Igreja Católica, CIC, 1076), o anúncio que fez Filipe aos samaritanos é o mesmo ao qual somos chamados a acolher no nosso hoje, na nossa história.
Nesse sentido, é importante lembrar que o cristianismo é essencialmente uma experiência, é um encontro com o Cristo Ressuscitado e, para além de qualquer sentimentalismo tão em voga em nossos dias, é verdadeira alegria, é verdadeira beleza que tem o poder de transformar nossas vidas: “Transformou o mar em terra seca, atravessaram o rio a pé enxuto… Ali alegramo-nos com ele…” (Salmo Responsorial. Trad. Bíblia de Jerusalém).
Essa experiência com o Senhor, por meio do Espírito, já a fizemos em nosso Batismo (Ritual da Iniciação Cristã de Adultos, RICA, 2 e CIC, 1213ss), mas é necessário aprofundá-la, vivê-la mais intensamente na liturgia (Concílio Vaticano II, Sacrosanctum Concilium, SC 2).
O Concílio Vaticano II afirmou com muita força que a Igreja não pode fazer a menos que anunciar aquilo que ela mesma recebeu de seu Senhor, por meio do Espírito Santo (cf. Concílio Vaticano II, Decreto Ad Gentes, AG n.2).
Ora, a Igreja não é uma entidade abstrata. São Pedro nos dizia no domingo anterior que nós somos “as pedras vivas desse edifício espiritual” (cf. 1Pd 2,5) que é a Igreja (cf. Concílio Vaticano II, Lumen Gentium, LG 6 e 7); somos aqueles que, mesmo diante das adversidades da vida, ao fazermos em primeira pessoa a experiência do Mistério Pascal, devemos estar “sempre prontos a dar a razão de nossa esperança a todo aquele que no-la pede” (1Pd 3,15. Segunda Leitura).
Dar razão de nossa esperança, o transmitir da fé, é algo portanto que nos diz respeito diretamente (Lc 18,8). A partir dessa constatação podemos pensar, por exemplo, em quantas crianças hoje, apesar de terem pais católicos, são “órfãs” na fé (cf. Evangelho Jo 14,18)? Numa visão pouco católica, não são poucos hoje na Igreja aqueles que crêem ser função apenas do catequista ensinar os rudimentos da fé às crianças…
O Diretório Nacional de Catequese – DNC (CNBB, Doc. 84) afirma com veemência a primazia dos pais na catequese de seus filhos (DNC n. 238), primazia esta que tem sua raiz no próprio Mistério Pascal vivenciado no sacramento do matrimônio.
“Se me amais, observareis meus mandamentos” (Jo 14,15. Evangelho).
Jesus ao afirmar a observância dos mandamentos se apresenta como o novo Moisés, o grande líder vetero-testamentário que mediou a entrega da Lei divina, os mandamentos, ao povo:
“São estes os mandamentos, os estatutos e as normas que o Senhor vosso Deus ordenou ensinar-vos… Ouve ó Israel: O Senhor nosso Deus é o único Senhor! Portanto, amarás ao Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força…” (Dt 6,1.4).
Essa passagem da Escritura é muito cara a todo Israel. As mães e os pais judeus sempre se esmeraram em ensinar a seus filhos, desde pequeninos, a recitá-la diariamente nas horas prescritas ainda hoje pela liturgia judaica. Podemos apenas imaginar como terá ressoado aos ouvidos dos discípulos as palavras de Jesus sobre a observância de seus mandamentos e sobre o amor do Pai: “Quem tem meus mandamentos e os observa é que me ama; e quem me ama será amado por meu Pai” (v. 21).
Jesus nos deixa claro que seus mandamentos não são preceitos jurídicos. Não se trata de legalismo, mas trata-se de amor. (“Dou-vos uma mandamento novo: que vos ameis uns aos outros…” Jo 13,34.). Fora desta perspectiva o cristianismo poderá correr o risco de reduzir-se a apenas um conjunto de dogmas frios, de ritos, de “catequeses-aulas” a serem aprendidas à memória…
Consideremos o cristianismo apenas a partir desta ótica e correremos o risco seríssimo de dizer muito pouco ao coração do homem contemporâneo, um coração sedento de amor verdadeiro, de um amor capaz de consolar a vida de todo homem e mulher.
“E ele vos dará outro Paráclito, para que convosco permaneça para sempre” (Jo 14,16b).
A palavra Paráclito vem do grego (paraklêtos) e tem o sentido de “alguém chamado para que esteja ao lado, para que assista”. Em latim o termo será traduzido ora como “consolator” (consolador), ora como “advocatus” donde, o nosso termo português “advogado”, isto é, alguém contratado para fazer a defesa de alguém, falar por alguém, num processo jurídico. O termo enquanto tal possui também o sentido de “protetor, defensor”.
Prescindindo de uma reflexão mais apurada ofertada pela ciência exegética, gostaríamos de considerar o aspecto do Espírito como aquele que pode de fato “consolar” o coração do homem, que pode ser o grande mestre interior capaz de levar o homem à Verdade, ao conhecimento de Deus, o Pai, pelo Filho que é “o Caminho a Verdade e a Vida” (Jo14,6), no Espírito Santo, doador de todo dom.
Deixar-se abrir a este dom e encontrar o sentido profundo da existência e afagar o rosto carinhoso do Pai bondoso que está nos céus.
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[Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes – São Paulo), que originalmente assina esta Seção, está em viagem à Itália para compromissos de sua comunidade. Ele retorna em quatro semanas. Os comentários deste período estão sob sua curadoria.]
ZENIT (São Paulo), 26/05/2011