Tratar a dependência é algo muito complexo, pois revela um paradoxo que esbarra em seu próprio tratamento. A dependência tem ou não tem cura? Sempre afirmo que é preciso ter conhecimento daquilo que pretendemos lidar para saber das nossas próprias dificuldades e permitir que moldemos aquele conceito que já tínhamos antes.
O indivíduo que abusa de drogas tem acentuada sensibilidade ao sofrimento, um enorme complexo de inferioridade e traz grande carga de autopiedade. No entanto, pelas suas ações, vai confirmando inclusive pra si mesmo, que é merecedor daquilo que vive. Podemos questionar: Tá, mas outras pessoas convivem com essas dificuldades e não se drogam; por que será que isso acontece a eles? O grande diferencial está em não se encontrar em condições de lidar com a sua vida e com tudo que a envolve.
Tomemos como base a sensibilidade ao sofrimento. A maturidade passa por um processo de enfrentamento das situações que pode se desembocar em frustração. Se o indivíduo se depara com uma situação que não consegue resolver de modo satisfatório, na próxima vivência ele lembrará que não foi bem sucedido e ao invés de enfrentá-la, desejará deixá-la de lado ou esquecida em sua memória, e vai fazer isso de forma que fique mais confortável. Esse sentimento de frustração mesclado de autopiedade invade e mancha a todos os outros que já carrega, fazendo com que aos outros sentimentos esteja sempre agregado essa mescla de pena de si mesmo, como uma tinta escura numa água limpa.
Podemos entender a dependência como uma consequência desse adoecer psíquico pela condição de dor, de pena e de frustração. E assim como uma laranja estragada no meio de outras, vai contaminando aqueles que o cercam, fazendo os outros partilharem e tragarem para si esses sentimentos. Certamente já ouvimos falar que quando temos um dependente em casa, a família adoece junto.
Porem chamo a atenção para um detalhe do qual poucos se dão conta. A dependência pode ser entendida como uma resposta, um sintoma desse adoecimento. Outros sintomas também acontecem, como compulsão por comida, bulimia, anorexia, cleptomania, enfim, todos pautados em fuga. Primeiro passa-se pelo processo de sofrimento, pela frustração, pelo receio do novo enfrentamento, para daí procurar subterfúgios, meios de se evadir, de fugir daquela condição intensa de sofrimento.
O dependente, contrário àqueles que também de forma sôfrega enfrentam os desafios, geralmente potencializa as dores, passando a valorizá-las mais do que o investimento que deve ser empenhado na hora de enfrentar seus dilemas. O familiar, que não tem noção da intensidade de dor que isso lhe provoca, pois de alguma forma cada um luta à sua maneira com o dia-a-dia, só percebe quando o sintoma se instaura. Mais ainda, muitos procuram negar até onde podem a doença dos seus, pois estão se esforçando, mas não estão preparados.
Defendo, portanto, que a dependência enquanto doença física pode ser curada e tem um prazo razoavelmente curto para essa cura. Basta seguir os procedimentos de ausência de consumo, alimentação saudável, disciplina de horário para alimentação e descanso e se necessário um suporte medicamentoso nos casos mais comprometidos. Seis meses é suficiente para que o corpo retome seu estado sadio. Já a doença psíquica clamará por um tratamento especial, até que passe por um processo de mudança, de reconhecimento da própria doença, de que o que se vivia até então precisa de reformulação, de novos projetos. Nunca esquecerá as dores e por isso precisará de novos investimentos em sua vida. Nunca serão apagados os lugares e contatos por onde andou e por isso precisará fazer outras escolhas. Nunca poderá deixar de lado suas dificuldades e por isso precisará se remeter muitas vezes ao início do novelo, onde tudo começou.
Este é um desafio caro. Custam muitas lágrimas, custa o preço de reconhecer-se nada para esvaziar-se e depois se preencher de valores espelhados na vida saudável, no pensamento saudável, na ação saudável. Custa aprender a identificar os altos e baixos e ter firmeza para não se deixar levar pelas turbulências. Custam muitos perdões, custam muitos pedidos de perdão. O tratamento psíquico se remete ao tratamento dos sentimentos. Sempre se precisará passar pelo sofrer. Como dizia o nosso grande poeta Vinícius de Morais, “a vida só se dá pra quem se deu, pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu…”
O lado reconfortante é que uma vez optando em tratar-se, o dependente encontrará suporte em pessoas capacitadas, com condições de ajudá-lo, em pessoas de coração grande que se doam em favor do outro, em parceiros que conhecem a estrada dolorosa do resgate da dignidade, que dão seu testemunho de vida e são exemplos a serem seguidos. Ou seja, nessa caminhada ele não estará sozinho. Aliás, nunca esteve. Mas enquanto olhava pra si esqueceu-se de olhar à sua volta, esqueceu-se de direcionar o olhar para o alto, de perceber que Deus sempre o acompanha. Esqueceu-se de tratar o espírito e agora já definha a sua casa, o corpo.
Vale lembrar que a opção do tratamento se não for conjunta, não acontecerá. Isso quer dizer que dependente e família precisam admitir que precisam de tratamento. Não há como pensar que tendo um dependente na família o problema não é seu. Nesse caso o tratamento já deve começar readequando essa maneira de pensar.