19/04/2011
por Leonardo Boff
A festa da páscoa se presta a muitas significações. Muitas delas perderam totalmente sua referência ao seu sentido primordial como festa de libertação da escravidão de todo um povo. O que predomina hoje é seu sentido comercial: bela ocasião para o comércio e para o consumo.
Para judeus e cristãos constitui um celebração fundadora: para os primeiros a passagem de uma situação de escravidão para uma situação de liberdade numa terra cheia de promessas. Para os segundos, os cristãos, representa a passagem da morte para a ressurreição entendida como a completa realização da essência humana. Jesus, executado na cruz e sepultado, rompe o túmulo e volta à vida, agora transfigurada.
Para nós hoje a páscoa pode significar uma metáfora da atual situação da Terra, nossa devastada morada comum. Nisso reside a metáfora: o Planeta como um todo está passando por uma severa páscoa, uma perigosa passagem (páscoa). Estamos dentro de um processo acelerado de perda: de ar, de solos, de água, de florestas, de gelos, de oceanos, de biodiversidade e de sustentabilidade do própro sistema-Terra. Sofremos estarrecidos com os terremotos no Haiti e no Chile e com os tsunamis no sudeste da Asia e neste ano de 2011 no Japão. Estes eventos extremos revelam a situação de caos em que penetrou a Terra. Quando as perdas vão parar? Ou para onde nos poderão conduzir? Podemos esperar como na páscoa que após a sexta-feira santa de paixão e morte, irrompa a ressurreição?
Precisamos de uma olhar retrospectivo sobre a história da Terra para lançarmos alguma luz sobre a crise atual. Antes de mais nada, cumpre reconhecer que terremotos e devastações são recorrentes na história geológica do Planeta. Existe uma “taxa de extinção de fundo” que ocorre no processo normal da evolução. Espécies perduram por milhões e milhões de anos e depois desparecem. É como um indivíduo que nasce, vive por algum tempo e depois morre. A extinção é o destino dos indivíduos e das espécies, também da nossa.
Mas além deste processo natural, existem as extinções em massa. A Terra, segundo geólogos, teria passado por 15 grandes extinções desta natureza. Duas foram especialmente graves. A primeira ocorrida há 245 milhões de anos por ocasião da ruptura de Pangéia, aquela continente único que se fragmentou dando origem aos atuais continentes. O evento foi tão devastador que teria dizimado entre 75-95% das espécies de vida então existentes. Por debaixo dos continentes continuam ativas as placas tectônicas, se chocando umas com as outras, se sobrepondo ou se afastando, movimento chamado de deriva continental, responsável pelos terremotos.
A segunda ocorreu há 65 milhões de anos, causada por alterações climáticas, subida do nivel do mar e arquecimento, eventos provocados por um asteróide de 9,6 km caido na América Central. Provocou incêndios infernais, maremotos, gases venenosos e longo obscurecimento do sol. Os dinossauros que por 133 milhões de anos dominavam, soberanos, sobre a Terra, desapareceram totalmente bem como 50% das espécies vivas. A Terra precisou de dez milhões de anos para se refazer totalmente. Mas permitiu uma radiação de biodiversidade como jamais antes na evolução. O nosso ancestral que vivia na copa das árvores, se alimentando de flores, tremendo de medo dos dinossauros, pôde descer à terra e fazer seu percurso que culminou no que somos hoje.
Cientistas notáveis (Ward, Ehrlich, Lovelock, Myers e outros) sustentam que está em curso um outra grande dizimação que se iniciou há uns 2,5 millhões de anos quando extensas geleiras começaram a cobrir parte do Planeta, alterando os climas e os níveis do mar. Ela se acelerou enormemente com o surgimento de um verdadeiro meteoro rasante que é o ser humano através de sua sistemática intervenção no sistema-Terra, particularmente nos último s séculos. Alguns falam da inauguração de uma nova era, o antropoceno, quer dizer, o ser humano se fez uma força geofísica de destruição. Peter Ward (O fim da evolução, 1977, p.268) refere que esta extinção em massa se nota claramente no Brasil que nos últimos 35 anos se estão extinguindo definitivamente quatro espécies por dia. E termina advertindo:”um gigantesco desastre ecológico nos aguarda”.
O que coloca o sentido da vida em crise é a existência dos terremotos e tsunamis que destroem tudo e dizimam milhares de pessoas. E aqui humildemente temos que aceitar a Terra assim como é: ora mãe generosa, ora madrasta cruel. Ela segue mecanismos cegos de suas forças geológicas. Ela nos ignora, por isso os tsunamis e cataclismos são aterradores. Mas nos passa informações. Nossa missão como seres inteligentes é descodificá-las para evitar danos ou usá-las em nosso benefício. Os animais captam tais informações e antes de um tsunami fogem para lugares altos. Talvez nós outrora, sabíamos captá-las e nos defendíamos. Hoje perdemos esta capacidade. Mas para suprir nossa insuficiência, temos a ciência. Ela pode descodificar as informações que previamente a Terra nos passa e nos sugerir estratégias de autodefesa e salvamento.
Como somos a parte consciente e inteligente da própria Terra, estamos ainda na fase juvenil, com pouca acumulação de experiência e de saber. Estamos ingressando na fase adulta, aprendendo melhor como observar e manejar as energias da Terra. Assim, por exemplo, não podemos construir casas ao pé de montanhas que por sua configuração geofísica podem deslizar como nas cidades serranas do Rio de Janeiro. É irracional levantar gigantescas usinas nucleares junto ao mar em regiões sujeitas a terremotos e a tsunamis como ocorreu no Japão. Se não escutarmos a natureza e não obedecermos a seus ritmos, ela nos punirá implacavelmeente Não porque queira, porque ela segue seu curso traçado em sua natureza geofísica. Mas através de nossa observação, cuidado e ciência, podemos evitar que seus mecanismos internos não sejam tão destrutivos. Temos muito ainda a crescer, a aprender, a amadurecer e a respeitar.
No atual momento a Terra pende da cruz. Temos que tirá-la de lá e ressuscitá-la enquanto é tempo. Só então tem sentido desejarmos uns aos outros: Feliz e ensolarada Páscoa.
Leonardo Boff é autor de Nossa ressurreição na morte, Vozes 2007.