No dia 14 deste mês, a liturgia da nossa Igreja celebrava a festa
da Exaltação da Cruz. O fiel é convidado a penetrar as profundezas de um
“amor que chegou aos extremos” (Jo 13,1), louvando, agradecendo, exaltando.
Não podemos restringir a nossa contemplação ao aspecto doloroso e trágico
dessa “bendita e louvada” Cruz, da qual pendeu a salvação do mundo. Ficamos
chocados e até, revoltados diante dessa ignominiosa crueldade de condenar um
Inocente através do suplício degradante e debochante, que era reservado aos
escravos mais vis e revoltados, os bandidos e salteadores.
Queremos engrandecer o heroísmo máximo de quem morreu pelas mais
nobres causas, escancarando o acesso à salvação para todos.
Sempre olhamos para o Crucificado com certa tristeza… Além de ter
diante dos olhos a imagem mais cruel do Homem das Dores, vem-nos à lembrança
a causa de tanto sofrimento: os pecados todos desde Adão até o final dos
tempos estão retratados ali, naquela imagem de um transfigurado pela dor,
ingratidão, pela paixão e pelo sofrimento da humanidade toda. O profeta
Isaías, nos Cânticos do Servo de Javé, havia profetizado: “O mais belo dos
homens perdeu toda a sua beleza. Não mais parece nem mesmo gente. Aparece
como “golpeado, humilhado, desonrado e triturado” (Is 53,5).
Contudo, os Santos viam nEle a suma beleza, o maior objeto de
esperança, a figura santa e verdadeira do homem novo. Desta forma, a Cruz
será o grande contraste, o desafio por definição. Por um lado demonstra a
maldade do ser humano e, por outro, a grandiosidade do amor do Pai “que não
poupou a seu próprio Filho” (Rm 8,32) e de Cristo, que demonstra ali o maior
amor pelos amigos, “morrendo por eles” (Jo 15,13).
O Crucificado é, efetivamente, o centro da História humana. É
naquela hora – a HORA entre as demais horas – que se realiza “a plenitude
dos tempos” (Ef 1,10 e Gl 4,4) Jesus havia confidenciado, que naquela hora
iria atrair tudo para si. De fato tudo se agrupa ao redor da Cruz; os povos
que andam nas trevas e os que avançam ao clarão da luz eterna; a história de
cada pessoa e do universo todo adquire pleno sentido à sombra dessa Cruz. É
por isso, que São Paulo nos fala do mistério da Cruz como o mistério
central, o centro de toda a ciência e sabedoria. O Crucificado, no mistério
de sua Paixão e Morte nos assegura o aprendizado dos seus inesgotáveis
tesouros de sabedoria e ciência. Achegando-nos ao Crucificado,
contemplando-o com profunda compenetração, tornamo-nos seus alunos e, se
formos dóceis aos seus ensinamentos, tornamo-nos seguidores dos seus passos
todos… até mesmo dos ensagüentados.
“A Cruz está de pé, enquanto o mundo gira”, cantava-se em séculos
passados, aparecendo, assim, a Cruz como a rocha firme, o baluarte que não
treme diante das coisas que passam. Ela é estável e firme! Ela está firme
enquanto os acontecimentos humanos se desenrolam a seus pés, transformados
pelo sangue redentor, pelo benefício de um amor eterno.
A Cruz é também o grande sinal da esperança última: “Verão aparecer
sobre as nuvens o sinal do Filho do Homem” (Mt 24,30). Os cemitérios, as
lápides sepulcrais quase todas estão assinaladas pela Cruz. É a certeza de
que aqueles que “morreram em Cristo, também ressuscitarão com Ele” (Rm 6,4).
A Cruz atravessa as sombras da morte, os muros do desconhecido mundo do
Além, e abre novas esperanças, a visão preanunciada de uma vida nova de
felicidade eterna: agregação conjunta de todos os bens e alegrias, amizade
transformante com Deus, imersão na sua glória.
A Cruz, dizíamos, se nos apresenta como um grande contraste, um
verdadeiro choque. Ali se defrontam o ódio máximo e o amor maior; o aparente
fracasso e a vitória final, já iniciada; a justiça e a misericórdia; as
luzes e as trevas; a tristeza da morte e o borbulhar das “fontes da alegria
de salvação” (Is, 12,3). A Cruz nos estimula ao sacrifício, ao heroísmo e ao
martírio. Nela os missionários de todos os tempos encontravam inspiração e
impulso evangelizador. Todos os inumeráveis mártires de ontem e de hoje
encontravam nela o ideal e a força para o sofrimento e para o enfrentamento
da própria morte, qualquer que fosse.
A Cruz, ainda hoje, nos irmana na solidariedade com os que sofrem:
doentes, encarcerados, injustiçados, excluídos… Para todos eles (e para
nós também) o Crucificado é a resposta: “Não temais eu venci o mundo” (Jo
16,33).
Ao nos persignarmos com o sinal do cristão – como aprendemos desde
o Catecismo – professamos a nossa fé que brota da Cruz e nela se consuma
como vitória final. Não percamos o lindo costume de enriquecermos as salas
de estar, salas de aula, de decisões maiores, estabelecimentos públicos –
com a figura nobre e, ao mesmo tempo, triste do Crucificado. É perene apelo
à justiça e honestidade. É garantia de acerto.
Ao contemplarmos um pouco mais de perto o Crucificado, entenderemos
melhor os segredos de Jesus e teremos mais coragem para enfrentar os
contratempos do dia-a-dia e nossos olhos penetrarão nos abismos do Amor…
A Cruz é uma das grandes maravilhas de um amor sem limites e sem
explicações, de um amor humano-divino de total doação.
Fonte: Amai-vos
10/2003